quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

O Apotecário e o Djinn

Texto escrito por Rodrigo Spindola




'm not enslaved to my cradle
I do not foresee my grave
I've found the real world and
It is I who shatters the wave
Remind me of the inherent wisdom
Of soaring freely through time and space
 Beyond the veil of immortality I can find my survival
The crystal pieces are bound to one soul
(Planeswalkers Invocation of Renewal)

Uma lâmina cintila perigosamente próxima a seu pescoço... Espada... de Cristal? Que belo trabalho manual... uma superfície lisa, polida e platinada subitamente toma seu campo de visão...uma armadura impressionante? Intensa luz ofusca seus olhos como se estivesse encarando o astro-rei a olho nu em manhã primaveril... um raio cruza os céus vertiginosamente, e, num clarão, passou a ver tudo de cima... a montanha se alonga e se estica, seguindo o trovão e impulsionando a criatura platinada às alturas...um grande estrondo... outro raio? Maior? Força avassaladora...inesperado...som de metal se partindo... a gravidade atuando impiedosamente...nada......


O apotecário e o djin perdido

Quando recobrou a consciência, a primeira visão que pairava sobre seu olhar violeta era a feição cansada e desgastada, mas também amigável e tranquila, de algo que parecia um humano de idade avançada, talvez uns 60 anos, que o estendia a mão, indagando preocupadamente: “Sr. Elfo, consegue me ouvir?? Consegue se mexer??? ”
“Isso, isso... devagar, sente-se aqui...” O “Elfo”, naquele instante, decidiu aquiescer à voz gentil do velho humano.

“Meu filho...” O humano continuava: “Encontrei você desmaiado aqui, estamos nos arredores de Lainport”.

Logo percebeu que, apesar de entender as palavras do humano, não lembrava de muitas outras coisas naquele momento, pedaços importantes de sua memória pareciam ausentes, não sendo sequer capaz de recordar seu próprio nome.

Reuniu forças para formular uma resposta básica: “S-s-sim, humano... Consigo lhe ouvir, obrigado.”  Notou que era capaz de distinguir-se daquele ser que acabara de encontrar, sabia o que era um humano, diferente dos elfos, dos djins, dos orcs, dos goblins, dos ferlix, dos norfss e todas as demais espécies sencientes do Primórdio...esse nome, Primórdio... sim...assim era conhecido o mundo que se recordava, ou seriam mundos? A ideia de que o Primórdio não era um planeta singular soou absurda, a princípio, para a lógica semi-infalível de seu intelecto, mas, ponderando por um segundo a mais, sua mente pareceu ficar estranhamente em paz com esse conceito.

À primeira vista, a amnésia que o afligia era parcial, mas significante o suficiente para lhe causar sensação de impotência que gerava extremo desconforto.

Era capaz de sentir a energia basal do universo verter por suas veias, mas não conseguia lembrar imediatamente o que aquilo significava, sua mente parecia despedaçada, com os cacos espalhados muito além de seu alcance...

Continuou se dirigindo ao velho que o encontrara, com a voz ainda trêmula pela confusão do despertar súbito: “L-l-laimport...ah! Sim...conheço esse nome.”

“Você me parece sedento, beba aqui, é apenas água fresca e filtrada pelo melhor apotecário de Laimport!” – proferiu o ancião humano, com um tom surpreendentemente confiante e energético para alguém que aparentava tamanha fragilidade e cansaço.

O humano não precisou se repetir, pois o suposto elfo tomou o cantil das mãos do velho e bebeu como se aquele fosse seu único objetivo de vida, ao menos pelos próximos instantes...

Cinco segundos depois, se engasgou e tossiu boa parte do que bebera na terra úmida entre suas pernas, sendo acudido pelo ancião e repreendido por sua voz desgastada - “não! Vá devagar, você deve ter ficado desmaiado por muito mais tempo do que imagina.”

Apenas aquiesceu, e no próximo minuto bebeu pequenos goles em silencio total, enquanto observava a feição de concordância de seu salvador humano, que exalava genuíno altruísmo.

No microcosmos de seus pensamentos, o incômodo do esquecimento se assemelhava a ser cortado lentamente por infinitas microlâminas de cristal, que penetravam invariavelmente em cada poro de seu corpo astral.

Foi interrompido pela voz incansável do apotecário: - “ Meu filho, você não é um elfo, não é mesmo? Esses seus olhos e a cor prata perfeita dos seus cabelos não mentem, eu sou velho, mas minha cabeça ainda funciona melhor que de muitos pirralhos de Laimport! Aha! Acabei de ver seu olhar brilhar por um instante, caramba! ”

Declarou, na sequência e com empolgação juvenil: - Um djin perdido!!! Eu já tinha encontrado de tudo por aqui, mas um djin desmemoriado, é a primeira vez nesses meus quase 60 verões! É uma honra, e me desculpe os maus modos Sr. Djin... apesar de viver em Laimport boa parte de minha curta vida e estar acostumado com elfos, achar o senhor por aqui, nesse estado, só pode ser destino, não pude me conter!

“De acordo com as leis do universo, é impossível para um ser como eu estar perdido, ao menos se tomado o sentido literal do adjetivo em questão, humano. ” As palavras saíram da boca da criatura de cabelos prateados de maneira quase automática, como se aquele tipo de atitude condescendente fizesse inatamente parte de sua espécie.

Ao proferir a resposta súbita, sentiu novamente aquele elo inquebrável com as energias essenciais da criação, “mana”... o termo ecoou em sua mente por um breve instante. Algo em sua alma o compeliu a se erguer prontamente, e assim procedeu, reunindo forças após se hidratar com a ajuda do ancião.

O velho apotecário, entretanto, ainda parecia sinceramente preocupado, apesar de ter acabado de tomar “um fora”, sabia que a sociedade élfica nunca fora conhecida por sua “humildade fulgurante”. Mas, o que tinham de esnobes, tinham de conhecimento armazenado em seus cérebros, conhecidamente impérvios a passagem de tempo, assim como todas as outras partes de seus corpos esguios e perfeitamente proporcionais.

“Filho, vá devagar, eu já lhe falei, vai acabar caindo e se machucando. Eu sei o quão ruim é tomar uma queda, ainda mais na minha idade! “ Ele continuava a agir com abnegação, se agachando o máximo que suas juntas humanas desgastadas o permitiam e oferecendo apoio ao desconhecido que acabara de tentar se erguer.

Com a ajuda, em poucos segundos o djin conseguiu se colocar de pé e, num suspiro profundo, sentiu o ar purificante da manhã penetrar cada célula de seu trato respiratório, como se cada átomo do elemento lhe conferisse uma dose necessária de tranquilidade e conforto.

Uma nova sensação o permeou, parecia alguma lembrança muito importante, pois começou a latejar vontade incontrolável, porém que lhe parecia familiar. Queria ser o vento, queria sentir a liberdade de seus ancestrais. Tal sensação irá indubitavelmente causar estranheza à maioria dos ouvintes e leitores, porém, na cabeça do anônimo de olhar violeta, aquilo não soava nem um pouco anormal.

Gesticulou para o velho que era capaz de se manter em pé por suas próprias forças, que aquiesceu, mas se afastou pouquíssimo, ainda aparentando honesta preocupação, mas deixou de apoiar o recém enfermo.

Instintivamente, o djin proferiu uma curta frase em sua língua-mãe: “a brisa da aurora descansa no interior de todos nós”

Assim que a última vogal do idioma élfico soou, o corpo do djin subitamente se transmudou, sua pele, suas unhas, seus cabelos, sua face, tudo pareceu se fundir ao ar local. Ainda era possível distinguir o contorno característico de sua forma material, porém todo o componente orgânico havia milagrosamente se transformado em algo semelhante a vento vivo contido dentro de um receptáculo de duas pernas.

“Eu sou um filho do vento, um djin, um ser parte elfo, parte elemental do ar... Sim, também sou um manipulador das energias primordiais, um arcanista, grossamente chamados pelos populares de “mago”... “Sim, me lembro agora...” A voz da criatura “aérea” parecia bem diferente para o humano, agora extremamente curioso, após o susto inicial causado pelo efeito mágico feito bem diante de seus olhos.

“Você está certo”, continuou o mago: “Eu sou um djin, um filho do ar cuja existência no plano material decorre da comunhão da raça élfica com os serenos Jins, conhecidos por vocês como elementais do ar.”

O humano apenas persistia contemplando o seu mais novo “achado”, como uma criança que acabou de encontrar um unicórnio cara a cara, completamente absorto no momento, seduzido pelo vislumbre das artes arcanas sendo produzidas por alguém que as manipula com evidente naturalidade. Seu paraíso mental, entretanto, foi interrompido por um som que sibilava como o rugir do vento se espremendo dentre as frestas naturais das majestosas Ululantes: “Volte a si, humano, e se afaste, preciso de mais espaço, ao menos 2 metros por segurança! Agora! ”

O aparente djin arcanista estava sentindo, novamente, um desejo estrondoso: sua mente havia sido subitamente invadida pela imagem de um grandioso e magnífico trovão que rasgava o céu até onde se podia ver...

Repetiu, então, a ação de um minuto atrás, já que, agora, compreendia melhor o que significava manipular a mana. Vociferou com ímpeto, como se embebido pela força de uma tempestade tropical: “Mas a tormenta também nos pertence!”

A expressão do humano ancião, que continuava embasbacado pela pureza e sutileza da magia arcana produzida na sua frente, foi, em menos de um segundo, de extremo interesse para pavor congelante.

Em um literal piscar de olhos, o corpo do ser aéreo transmutou-se em raio vivo, a eletricidade correndo e se conectando de maneiras absurdas e incompreensíveis para um leigo em manipulação mágica.

“Pelos Deuses, é raio mesmo! ”  Exclamou com empolgação e notando que realmente não havia perigo, afinal o mago parecia em total controle das invocações arcanas demonstradas. Então, voltou novamente à postura curiosa: “Carambolas!!! Esse com certeza é o dia mais interessante dos meus últimos 30 verões, com margem! ”

Para sorte do apotecário, os reflexos do djin pareciam já ter voltado quase que totalmente, pois, enquanto entoava as palavras de poder, graciosamente se afastou mais um metro do humano, criando distância segura entre ele e a energia das tempestades recém invocada.

“O senhor deveria ter uma noção melhor das capacidades de um Djin, em que pese o evidente desgaste de sua figura material, parece-me um humano acima da média em intelecto, afinal foi capaz de perceber que sou metade elfo e metade Jin, logo, um djin, algo incomum para a maioria dos humanos. Aliás,  Eu ouvi o termo apotecário? ” Agora era o Djin que parecia estar exercitando sua curiosidade, fitando o ancião humano através dos raios contidos no receptáculo de seu corpo.

“Eu não consigo lembrar exatamente o que transcorreu nos últimos tempos, estou usando a magia inata de meu ser para tentar ativar a minha memória de alguma forma, mas apenas informações básicas vêm a mim nesse momento, como o conhecimento de alguns feitiços arcanos iniciais da escola do elemento do ar.”

Enquanto conversava com o humano, realizou diversos movimentos rápidos e precisos com seus braços, apontando-os em determinada direção como se fossem armas de longa distância prestes a alvejar um algoz. Na maioria das situações, seria risível presenciar alguém se comportando de tal forma (salvo em uma competição de dança, obviamente!), mas, no caso do recém encontrado Djin, a cada esticada de braço, a energia de seu corpo elétrico parecia ser direcionada incisivamente naquela direção, voando em velocidade avassaladora e produzindo um zumbido similar ao de um trovão, contudo muito mais curto e sutil.

Para deslumbre do humano, que não era capaz de tirar os olhos do que presenciava, ao menos uns 10 pequenos raios foram atirados pelos braços elétricos do Djin, colidindo com a terra fofa a uma distância segura de ambos. Parecia inebriado por seu novo amigo e pelo característico cheiro de ozônio (algo similar ao odor de “terra molhada”) exalado por ele, que tinha ficado muito mais intenso depois que o show de raios começou.

Logo após o último raio colidir com o chão úmido, passado quase 1 minuto desde que o Djin havia mudado seu corpo para raio vivo, voltou a ser apenas uma criatura material, seus cabelos prateados como a lua cheia e olhos da cor púrpura novamente visíveis.

Ato contínuo, repetiu a dinâmica de poucos segundos atrás e, surpreendendo novamente o velho, atirou mais uns cinco pequenos raios na terra a uns 10 metros de distância, realizando sutis movimentos (que para o velho claramente eram gestos arcanos, usados por praticantes para executar seus pequenos milagres mágicos) com o braço inábil. Murmurou para si mesmo, mas em som audível até para os ouvidos do apotecário: “Sim, mas é evidente! As descargas elétricas são primariamente um ataque, o corpo de eletricidade primordialmente uma defesa, não preciso deste para me utilizar daqueles! “

O djin parecia absorto em suas maquinações: “Sim, sim... A mana requer energia do usuário para ser manipulada, isso é cristalino. Por mais que as forças da criação do universo representem poder infinito, sua manipulação por criaturas dotadas custa caro, normalmente”

Os segundos de silêncio foram demais para o velho, que pareceu gritar, tamanha a excitação: “Olha, eu acho que posso lhe ajudar, Sr. Djin! Falando nisso...” - seu tom de voz baixou imediatamente  - ... “onde estão minhas boas maneiras? Se meu falecido pai me visse agora eu provavelmente seria repreendido, não me apresentei propriamente a um Lorde...”  “Me chamo Angus, sou um apotecário com domicílio em Lainport, é uma honra enorme conhecê-lo, Senhor Djin. “

O mago, agora, parecia entretido pela mudança de atitude do velho: “Ah! O pragmatismo simplificante da mente humana... os djins não são exatamente lordes, a sociedade élfica apenas os conferiu certo nível de status social por conta de nossa origem extraplanar, por respeito a nossos ancestrais do ar.”

“É um prazer conhece-lo também, sr. Angus, infelizmente não sou capaz de recordar meu nome, ainda, mas muitíssimo obrigado por me ajudar. Estou tendendo a concordar que talvez esse encontro realmente não tenha sido mero acaso, apesar de ser forçoso, para mim, acreditar em qualquer tipo de predeterminação de destino."

"Predeterminação?!??" Exclamou o velho.   "Não mesmo! Concordo que a ideia de que nossos caminhos já se encontram traçados por entidades superiores não me apetece, porém acredito que certos encontros são oportunamente arranjados pelo universo."

Angus continuou: "naturalmente, o termo lorde não define a exata situação dos djins no Primórdio, mas, entre os humanos e outras raças mais jovens do mundo, vocês são conhecidos como os lordes magos da raça élfica, já que a maioria são arcanos habilidosos, além de automaticamente respeitados por seu status superior entre os elfos.

“Certo, suponho que seja melhor simplificar as informações do que complicá-las, de uma forma geral. Veja bem, sr. Angus, eu estou numa situação ainda bastante desfavorável, portanto lhe pergunto se seria demais lhe pedir para ser guiado até Lainport, que parece ser a cidade mais próxima.”

“Eu provavelmente seria assombrado pelo espírito de meus ancestrais se me recusasse a prestar auxílio a alguém como o senhor, um djin e mago habilidoso e, de quebra, bem educado e gentil!”

“Agradeço os elogios e o altruísmo demonstrado pelo senhor…”

“Chega de formalismo, por favor! Me chame apenas de Angus. Assim sou conhecido por todos: Angus, o velho apotecário de Lainport.”

“Claro… Angus, muito obrigado…” O djin novamente foi interrompido pela empolgação do velho: “Não se preocupe com nada, você pode ficar na minha casa até quando quiser, não é uma mansão, mas tenho um quarto sobrando e talvez você se interesse um pouco por alquimia e herbalismo”.

Os substantivos “alquimia” e “herbalismo” pareceram ativar novamente alguma coisa na mente do mago, que, a partir dali, passou a se recobrar dos ensinamentos sobre as interações entre as diferentes formas da matéria, bem como sobre a arte de se extrair milagres da flora natural.

Respondeu ao ancião: “Sim, definitivamente me interesso por ambos.”

“Perfeito!” Retrucou Angus. “Eu estava exatamente indo visitar um local muito especial, a apenas umas duas horas de caminhada daqui, tenho certeza que vai valer o seu tempo. Já ouviu falar de um vegetal, uma flor, na verdade, conhecida como manaflower?

“Naturalmente, é um dos pouquíssimos vegetais, senão o único, que é capaz de gerar e armazenar energia arcana pura.”

“Aha! Meu filho, você deve saber ainda mais sobre alquimia e herbalismo do que eu, o conhecimento apenas precisa ser revivido dentro de sua cabeça. Escuta, uma coisa eu sei, as manaflowers, se induzidas no ponto de cocção correto, produzem uma secreção notadamente conhecida por sua capacidade de regenerar memórias. Temos boas chances de encontrarmos uma hoje e, quando voltarmos para minha estufa, farei o chá mais gostoso e regenerativo que já tomou!”

“Hmmm, muito interessante. Então, você sabe onde encontrar uma manaflower, hoje?”

“Exatamente, esperei anos por esse dia. Fiz questão de manter meu calendário atualizado e não confiar somente na minha mente desgastada.” Enquanto falava, o apotecário parecia procurar alguma coisa no interior de sua bolsa de ombro. Em instantes, emergiu com uma espécie de papel enrolado, que procedeu a desenrolar e estender ao djin.

“Veja, é precisamente hoje o dia do florescimento, que terá seu auge entre as 8:33 e 9:55h da manhã, momento perfeito para coleta do vegetal. Ainda não são nem 7:00h da manhã, temos tempo de sobra para chegarmos no local exato.”

“Estou lhe seguindo, Angus, vamos.” Respondeu rapidamente o djin. A possibilidade de recobrar memórias e conhecimento através de uma flor mágica deixou evidente qual caminho seguir, por enquanto. Além disso, a ideia de um chá com as propriedades narradas pelo humano não parecia absurda de acordo com seus próprios conhecimentos alquímicos, recém-recordados.

“Por aqui, então...”

Os dois, companheiros de viagem pelo acaso, continuaram por quase duas horas de caminhada, em marcha lenta (na velocidade que permitiam as pernas de Angus, o djin claramente diminuía seu passo para acompanha-lo no decorrer da curta jornada).

Porém, apesar de mais devagar, Angus demonstrava disposição incomum para a idade, o que impressionou o djin, enquanto ele próprio buscava um gole d’água no cantil emprestado.

“Chegamos! Impossível de esquecer o cheiro desse lugar e a cor levemente violeta de parte da vegetação rasteira, olha!” Novamente o apotecário parecia empolgado demais para a idade, mas o djin realmente não pôde deixar de notar a cor violeta de parcela da grama local e um cheiro particular, que não conseguia associar a nada, mas que lhe era misteriosamente inebriante.

“Ótimo, eu vou encostar nessa árvore um pouco e beber mais água enquanto o senhor se certifica da presença da manaflower, preciso recuperar meu fôlego por um minuto.”

“Claro, não vou me afastar nem 50 metros. O que essa área tem de especial, tem de pequena, e tenho certeza que é aqui. É bom que fique um tempo sentado mesmo, já volto.”

O djin apenas aquiesceu enquanto o humano se afastava lentamente. Em instantes, não era mais capaz de ver o velho perfeitamente, sua silhueta ficando rapidamente nublada e ofuscada pela mistura da densa vegetação com os poucos, mas intensos, raios do sol da manhã que encontravam espaço entre as copas das árvores.

Em menos de um minuto, os dois não estavam mais à vista um do outro e o djin aproveitou o silêncio para apreciar os sons naturais da mata. Percebeu, também, que a vegetação local era consideravelmente mais densa do que havia notado antes, mas o cheiro peculiar era o que continuava a chamar mais sua atenção.

Fechou os olhos por um momento, queria direcionar todo o estímulo possível ao olfato. Em seguida, deu alguns longos e profundos suspiros, puxando lentamente o ar matutino.
Nesse momento, sua mente pareceu se conectar a algum evento esquecido de seu passado.
Podia ver um local similar ao que estava segundos atrás, mas as árvores eram significativamente maiores e num tom de verde mais vibrante.

Olhou os arredores nessa nova realidade, permanecia sentado e recostado numa árvore, mas dois objetos peculiares se destacavam no seu campo de visão, um acinzentado e outro claramente roxo, pareciam alinhados, a uma distância de uns 10 metros de onde estava agora... a visão do djin parecia imperfeita e precária e o local parecia ocupado por fina neblina.

Levantou-se e começou a se aproximar, o objeto cinza parecia tomar forma pentagonal e, o outro, se revelava como alguma espécie de flor, que exibia uma paleta de cores improvável de ser produzida pela natureza.

Uma lápide élfica... “...Alonen”. Era capaz apenas de distinguir essa palavra na inscrição do epitáfio, mas o primeiro nome do morto permanecia completamente nublado à visão do djin.

A menos de um metro, alinhada à lápide, jazia a flor mais bela que sua mente era capaz de se recordar. Suas pétalas eram num tom violeta místico e vivo, que parecia cintilar dependendo do ângulo do observador; seu núcleo, completamente prateado, como se cada microsecção tivesse sido cuidadosamente insculpida em platina por um mestre artesão; seu caule era longo e robusto, em um tom azul profundo e escuro. O mais impressionante, porém, era a evidente magia emanada do vegetal, pois um tipo de “halo” colorido (mas predominantemente roxo) e visível a olho nu o envolvia.

Passado o deslumbre inicial com a flor, o odor do local, claramente emanado pelo vegetal, mais uma vez dominou seus sentidos. Repentinamente, ecoou na mente do arcanista a voz de alguém que parecia uma espécie de tutor, dizendo: - a memória olfativa é uma das mais estimuláveis pelo cheiro original...

Ato contínuo, reuniu a integridade de sua fortaleza mental e tentou se focar apenas no odor da manaflower, cerrando novamente os olhos (o local já era silencioso por si só).

Em alguns segundos, sua mente foi invadida por tristeza profunda e avassaladora. Mas não era só isso, também começou a se sentir confuso, ludibriado, com raiva em relação a algo desconhecido... O que o odor característico trazia de lembranças parecia estar vindo associado a um turbilhão de emoções que desnorteavam o djin.

Então, abriu os olhos, não mais suportando aquelas sensações desalentadoras. Fitou a inscrição na lápide mais uma vez, o primeiro nome ainda turvo à sua visão, mas continuava podendo ver claramente a inscrição “Alonen”, que, agora, por algum motivo, passou a associar a um nome de alguma família élfica.

Ouviu um grito súbito, que pareceu insculpir a palavra - pavor - na mente do mago. Abriu os olhos de novo e se viu encostado na mesma árvore de um tempo atrás, com o cantil no colo, seu conteúdo escorrendo lentamente por suas vestes.

Instantaneamente voltou a si e logo associou o berro recém escutado ao velho apotecário. Catou rapidamente o cantil e se levantou em movimento único, dirigindo-se na direção da voz.
Corria o melhor que seu físico permitia na direção donde parecia ter vindo a voz, que coincidiu com a parte onde havia visto o ancião por último antes de se adentrar na vegetação densa. “Estou na direção certa.” Ponderou.

Não muito depois, escutou outro berro, agora mais curto e abafado, porém mais próximo e audível. Teve certeza que ouviu a palavra “orc” sendo falada na língua dos humanos. “Droga! Preciso ir mais rápido que isso, aquele velho não vai durar segundos se há um orc hostil por perto.” A sensação de urgência tomou conta de si, queria chegar no apotecário e ajudá-lo, AGORA!

Felizmente, a adrenalina do momento funcionou como catalizador à lembrança de um conhecimento de especial utilidade. Por pura memória muscular, o mago realizou movimentos curtos e precisos com uma de suas mãos, de difícil percepção ao observador médio, leigo à thaumatologia[1]. No mesmo instante, sentiu seu corpo se acelerar consideravelmente, capaz de transpor longas distâncias em segundos.

Continuou velozmente em direção ao urro, abrindo espaço com as mãos entre a vegetação densa e baixa.

Segundos depois, chegou numa pequena clareira, de menos de 5 metros de diâmetro, onde podia ver Angus tentando escapar desesperadamente de uma criatura humanoide: sua pele era verde, seu tamanho consideravelmente acima da média humana ou élfica, sua complexão física, contudo, era o fato mais assustador.  O ser em questão era composto de uma massa de músculos, veias protuberantes e visível ódio (ou desespero, o djin não teve tempo de aferir precisamente).

O orc portava um grande machado, o segurando com ambas as brutais mãos. Sangue vertia de sua boca, mas exalava fúria implacável em direção ao velho, que agora encarava seu algoz de baixo, já que acabara de tropeçar durante a fuga. Vendo a oportunidade única, o orc iniciou movimento em elipse com suas mãos hábeis, balançando a lâmina na direção de sua vítima.

A fatalidade iminente só foi capaz de produzir uma reação no djin, que vociferou: “pare agora, orc sujo” na língua comum.

Surpreendentemente, o orc pareceu acatar exatamente a ordem proferida, parando repentinamente o movimento de seu machado, de modo que quase perdeu o equilíbrio e foi ao chão.

A expressão do djin não demonstrava nenhuma surpresa com a súbita mudança de atitude da criatura musculosa. Mesmo com a súbita ocorrência, pareceu em paz com a ideia de estranhos acatarem seus comandos de maneira precisa e imediata. Sim... O mago acabara de se lembrar da versátil escola arcana do controle da mente. Esse conhecimento parecia, depois do momento de necessidade, óbvio.

No calor do momento, através da invocação de curtas palavras em seu idiota nativo, continuou instintivamente tentando enviar comandos mentais ao algoz, todos com a mesma intenção: “fique parado e imóvel”. Novamente, o orc parecia não conseguir agir fronte à presença do djin.

Logo notou a eficácia de seus feitiços de controle mental e a inércia do inimigo, podendo analisar um pouco melhor o cenário e perceber que a criatura, momentaneamente sob controle, estava seriamente ferida - sangue escorrendo de um ferimento abdominal.

Em mais um momento de epifania induzida pela adrenalina do momento, recordou-se de outro domínio arcano, o mesmo que já havia usado há menos de minuto atrás - foi um feitiço da escola da movimentação que o fizera se acelerar a caminho da clareira.

Mas tais conhecimentos mágicos podiam causar efeitos muito além de simples aceleração de um sujeito...

Com gestos ligeiros e quase imperceptíveis, produziu novamente um pequeno milagre arcano, enquanto parecia fitar os pés do orc.

A criatura, voltando a si logo em seguida, não mais demonstrava a confusão mental de uns segundos atrás [2]redirecionando sua fúria a novo alvo, o chamativo djin mago, que apareceu do nada para estragar sua pilhagem e possível gole d’água, depois de horas vagando sozinho e sedento.

Voltando imediatamente à postura de ataque, o gigante urrou e partiu para cima de sua nova vítima, ao menos foi essa a ideia...

Logo no primeiro movimento de suas pernas, notou que havia algo errado com o chão que pisava, pois, em um piscar de olhos, o orc se viu no mesmo nível do solo, com a cara estatelada na grama fofa e a face apavorada do velho novamente em seu campo de visão, mas agora não o via mais de cima, já que tinha ido ao chão de maneira ainda mais desastrada que o próprio apotecário.

“Área escorregadia...” O nome básico do feitiço se materializou nos pensamentos do mago, o que não o distraiu da ameaça iminente. Não satisfeito com a atual precária situação do orc, procedeu novamente a controlar o intelecto inferior da criatura, efetivamente embaralhando seus pensamentos e o impedindo de sequer entender o que havia acabado de ocorrer. Pensou consigo mesmo: “Creio que agora ele fique no chão por 4 segundos, no mínimo. Deve ser o suficiente.”

Ato contínuo, proferiu, novamente, curtas palavras no idioma élfico, gerando espontaneamente eletricidade na ponta de seus dedos (exatamente como fizera há horas atrás), agora visivelmente apontados ao orc caído. Fez isso ao mesmo tempo que se aproximou lentamente do alvo – não podia errar.

A criatura caída permaneceu mais um instante na confusão mental magicamente induzida. Vendo a oportunidade, o djin se aproximou mais um metro do alvo, o raio que “segurava” estava, visivelmente, mais intenso que no segundo anterior e, agora, apontado em direção à cabeça do orc.

Num estrondo impetuoso e agudo, a eletricidade se desprendeu das mãos do arcanista, acertando, em milésimos de segundo, a testa do orc desavisado, cuja cabeça tombou no mesmo instante, fumaça negra emanando de suas narinas, ouvidos e boca e com boa parte do torso superior também enegrecido...

“Angus! Você está ferido?” O djin indagava o velho, ao mesmo tempo em que se certificava da morte do humanoide musculoso e esverdeado.

“Sim, sim... Digo: não, não estou ferido... o susto passou, meu filho, obrigado.”

“Você realmente é um lorde mago, como os humanos dizem. Nunca tinha presenciado tamanha graça no trato com uma criatura tão selvagem quanto um orc. Serei eternamente agradecido a este filho do vento”

“Não seja tolo!” Esbravejou o arcanista. “Tive considerável sorte nesse combate, apotecário. Apenas estou feliz de ter conseguido chegar a tempo, pelo menos estamos razoavelmente quites agora, o senhor me ajudou e agora eu lhe ajudei.”

“Quites uma ova, eu estou em dívida com você.” A voz de Angus adquiriu, do nada, tom veemente. Continuou, então, o “sermão de idoso”: “acordar um estranho e oferecer água não se compara a controlar e eliminar um orc como acabei de presenciar...”

“Sabe no que realmente fomos sortudos?” O velho, já de pé, virou-se e começou a caminhar em direção ao limite da clareira. “Essa belezinha continua intacta.”

No calor do embate de poucos instantes atrás, o mago não foi sequer capaz de notar um vegetal com coloração absurda, que emitia um evidente brilho caleidoscópico na pequena clareira. Dirigiu sua atenção à planta, percebendo se tratar, na verdade, de uma flor, num tom de roxo improvável, mas familiar.

Sorriu pela primeira vez desde que havia acordado. “A manaflower é de fato um deleite para o olhar, Angus. É maravilhoso poder vislumbrar, mais uma vez, esse produto tão exótico e deslumbrante da Mãe Natureza.

A mente do djin voltou, por um segundo, à clareira de outrora, onde estavam a lápide e a flor...     
   
“Aliás...” Mas o djin voltou a si, novamente fronte a Angus. “...Meu nome é Olorin Alonen, muito prazer, sr. Angus de Lainport.”

A satisfação de recordar o próprio nome se misturava à uma inexplicável sensação de perda...

Mas, por hora, o djin estava satisfeito com os recentes avanços, havia recuperado diversas memórias em poucas horas desde o despertar súbito.

“Então, Angus, estou ansioso para ver o senhor realizando a coleta da manaflower.”

O apotecário apenas sorriu para Olorin e se agachou, iniciando o trabalho.




[1] Termo usado pelos magos e demais conhecedores da magia arcana que representa o ato de estuda-la como ciência.
[2] A confusão mental causada pela magia do djin, normalmente, só durava alguns instantes em qualquer alvo, já que se tratava de feitiço básico do domínio da escola do controle da mente.