'm not enslaved to my cradle
I do not foresee my grave
I've found the real world and
It is I who shatters the wave
Remind me of the inherent wisdom
Of soaring freely through time
and space
Beyond the veil of immortality I can find my
survival
The crystal pieces are bound to
one soul
(Planeswalkers
Invocation of Renewal)
Uma lâmina cintila perigosamente próxima a seu pescoço... Espada... de
Cristal? Que belo trabalho manual... uma superfície lisa, polida e platinada
subitamente toma seu campo de visão...uma armadura impressionante? Intensa luz
ofusca seus olhos como se estivesse encarando o astro-rei a olho nu em manhã
primaveril... um raio cruza os céus vertiginosamente, e, num clarão, passou a
ver tudo de cima... a montanha se alonga e se estica, seguindo o trovão e
impulsionando a criatura platinada às alturas...um grande estrondo... outro
raio? Maior? Força avassaladora...inesperado...som de metal se partindo... a
gravidade atuando impiedosamente...nada......
O apotecário e o djin
perdido
Quando recobrou a consciência, a primeira visão que pairava sobre seu
olhar violeta era a feição cansada e desgastada, mas também amigável e
tranquila, de algo que parecia um humano de idade avançada, talvez uns 60 anos,
que o estendia a mão, indagando preocupadamente: “Sr. Elfo, consegue me ouvir??
Consegue se mexer??? ”
“Isso, isso... devagar, sente-se aqui...” O “Elfo”, naquele instante,
decidiu aquiescer à voz gentil do velho humano.
“Meu filho...” O humano continuava: “Encontrei você desmaiado aqui,
estamos nos arredores de Lainport”.
Logo percebeu que, apesar de entender as palavras do humano, não
lembrava de muitas outras coisas naquele momento, pedaços importantes de sua
memória pareciam ausentes, não sendo sequer capaz de recordar seu próprio nome.
Reuniu forças para formular uma resposta básica: “S-s-sim, humano...
Consigo lhe ouvir, obrigado.” Notou que
era capaz de distinguir-se daquele ser que acabara de encontrar, sabia o que
era um humano, diferente dos elfos, dos djins, dos orcs, dos goblins, dos
ferlix, dos norfss e todas as demais espécies sencientes do Primórdio...esse
nome, Primórdio... sim...assim era conhecido o mundo que se recordava, ou
seriam mundos? A ideia de que o Primórdio não era um planeta singular soou
absurda, a princípio, para a lógica semi-infalível de seu intelecto, mas,
ponderando por um segundo a mais, sua mente pareceu ficar estranhamente em paz
com esse conceito.
À primeira vista, a amnésia que o afligia era parcial, mas significante
o suficiente para lhe causar sensação de impotência que gerava extremo
desconforto.
Era capaz de sentir a energia basal do universo verter por suas veias,
mas não conseguia lembrar imediatamente o que aquilo significava, sua mente
parecia despedaçada, com os cacos espalhados muito além de seu alcance...
Continuou se dirigindo ao velho que o encontrara, com a voz ainda
trêmula pela confusão do despertar súbito: “L-l-laimport...ah! Sim...conheço
esse nome.”
“Você me parece sedento, beba aqui, é apenas água fresca e filtrada pelo
melhor apotecário de Laimport!” – proferiu o ancião humano, com um tom
surpreendentemente confiante e energético para alguém que aparentava tamanha
fragilidade e cansaço.
O humano não precisou se repetir, pois o suposto elfo tomou o cantil das
mãos do velho e bebeu como se aquele fosse seu único objetivo de vida, ao menos
pelos próximos instantes...
Cinco segundos depois, se engasgou e tossiu boa parte do que bebera na
terra úmida entre suas pernas, sendo acudido pelo ancião e repreendido por sua
voz desgastada - “não! Vá devagar, você deve ter ficado desmaiado por muito
mais tempo do que imagina.”
Apenas aquiesceu, e no próximo minuto bebeu pequenos goles em silencio
total, enquanto observava a feição de concordância de seu salvador humano, que
exalava genuíno altruísmo.
No microcosmos de seus pensamentos, o incômodo do esquecimento se
assemelhava a ser cortado lentamente por infinitas microlâminas de cristal, que
penetravam invariavelmente em cada poro de seu corpo astral.
Foi interrompido pela voz incansável do apotecário: - “ Meu filho, você
não é um elfo, não é mesmo? Esses seus olhos e a cor prata perfeita dos seus
cabelos não mentem, eu sou velho, mas minha cabeça ainda funciona melhor que de
muitos pirralhos de Laimport! Aha! Acabei de ver seu olhar brilhar por um
instante, caramba! ”
Declarou, na sequência e com empolgação juvenil: - Um djin perdido!!! Eu
já tinha encontrado de tudo por aqui, mas um djin desmemoriado, é a primeira
vez nesses meus quase 60 verões! É uma honra, e me desculpe os maus modos Sr.
Djin... apesar de viver em Laimport boa parte de minha curta vida e estar
acostumado com elfos, achar o senhor por aqui, nesse estado, só pode ser
destino, não pude me conter!
“De acordo com as leis do universo, é impossível para um ser como eu
estar perdido, ao menos se tomado o sentido literal do adjetivo em questão,
humano. ” As palavras saíram da boca da criatura de cabelos prateados de
maneira quase automática, como se aquele tipo de atitude condescendente fizesse
inatamente parte de sua espécie.
Ao proferir a resposta súbita, sentiu novamente aquele elo inquebrável
com as energias essenciais da criação, “mana”...
o termo ecoou em sua mente por um breve instante. Algo em sua alma o compeliu a
se erguer prontamente, e assim procedeu, reunindo forças após se hidratar com a
ajuda do ancião.
O velho apotecário, entretanto, ainda parecia sinceramente preocupado,
apesar de ter acabado de tomar “um fora”, sabia que a sociedade élfica nunca
fora conhecida por sua “humildade fulgurante”. Mas, o que tinham de esnobes,
tinham de conhecimento armazenado em seus cérebros, conhecidamente impérvios a
passagem de tempo, assim como todas as outras partes de seus corpos esguios e
perfeitamente proporcionais.
“Filho, vá devagar, eu já lhe falei, vai acabar caindo e se machucando.
Eu sei o quão ruim é tomar uma queda, ainda mais na minha idade! “ Ele
continuava a agir com abnegação, se agachando o máximo que suas juntas humanas
desgastadas o permitiam e oferecendo apoio ao desconhecido que acabara de
tentar se erguer.
Com a ajuda, em poucos segundos o djin conseguiu se colocar de pé e, num
suspiro profundo, sentiu o ar purificante da manhã penetrar cada célula de seu
trato respiratório, como se cada átomo do elemento lhe conferisse uma dose
necessária de tranquilidade e conforto.
Uma nova sensação o permeou, parecia alguma lembrança muito importante,
pois começou a latejar vontade incontrolável, porém que lhe parecia familiar. Queria
ser o vento, queria sentir a liberdade de seus ancestrais. Tal sensação irá
indubitavelmente causar estranheza à maioria dos ouvintes e leitores, porém, na
cabeça do anônimo de olhar violeta, aquilo não soava nem um pouco anormal.
Gesticulou para o velho que era capaz de se manter em pé por suas
próprias forças, que aquiesceu, mas se afastou pouquíssimo, ainda aparentando
honesta preocupação, mas deixou de apoiar o recém enfermo.
Instintivamente, o djin proferiu uma curta frase em sua língua-mãe: “a
brisa da aurora descansa no interior de todos nós”
Assim que a última vogal do idioma élfico soou, o corpo do djin
subitamente se transmudou, sua pele, suas unhas, seus cabelos, sua face, tudo
pareceu se fundir ao ar local. Ainda era
possível distinguir o contorno característico de sua forma material, porém todo
o componente orgânico havia milagrosamente se transformado em algo semelhante a
vento vivo contido dentro de um receptáculo de duas pernas.
“Eu sou um filho do vento, um djin, um ser parte elfo, parte elemental
do ar... Sim, também sou um manipulador das energias primordiais, um arcanista,
grossamente chamados pelos populares de “mago”... “Sim, me lembro agora...” A
voz da criatura “aérea” parecia bem diferente para o humano, agora extremamente
curioso, após o susto inicial causado pelo efeito mágico feito bem diante de
seus olhos.
“Você está certo”, continuou o mago: “Eu sou um djin, um filho do ar
cuja existência no plano material decorre da comunhão da raça élfica com os
serenos Jins, conhecidos por vocês como elementais do ar.”
O humano apenas persistia contemplando o seu mais novo “achado”, como
uma criança que acabou de encontrar um unicórnio cara a cara, completamente
absorto no momento, seduzido pelo vislumbre das artes arcanas sendo produzidas
por alguém que as manipula com evidente naturalidade. Seu paraíso mental,
entretanto, foi interrompido por um som que sibilava como o rugir do vento se
espremendo dentre as frestas naturais das majestosas Ululantes: “Volte a si,
humano, e se afaste, preciso de mais espaço, ao menos 2 metros por segurança!
Agora! ”
O aparente djin arcanista estava sentindo, novamente, um desejo
estrondoso: sua mente havia sido subitamente invadida pela imagem de um
grandioso e magnífico trovão que rasgava o céu até onde se podia ver...
Repetiu, então, a ação de um minuto atrás, já que, agora, compreendia
melhor o que significava manipular a mana. Vociferou com ímpeto, como se
embebido pela força de uma tempestade tropical: “Mas a tormenta também nos
pertence!”
A expressão do humano ancião, que continuava embasbacado pela pureza e
sutileza da magia arcana produzida na sua frente, foi, em menos de um segundo,
de extremo interesse para pavor congelante.
Em um literal piscar de olhos, o corpo do ser aéreo transmutou-se em
raio vivo, a eletricidade correndo e se conectando de maneiras absurdas e
incompreensíveis para um leigo em manipulação mágica.
“Pelos Deuses, é raio mesmo! ”
Exclamou com empolgação e notando que realmente não havia perigo, afinal
o mago parecia em total controle das invocações arcanas demonstradas. Então, voltou
novamente à postura curiosa: “Carambolas!!! Esse com certeza é o dia mais
interessante dos meus últimos 30 verões, com margem! ”
Para sorte do apotecário, os reflexos do djin pareciam já ter voltado
quase que totalmente, pois, enquanto entoava as palavras de poder,
graciosamente se afastou mais um metro do humano, criando distância segura
entre ele e a energia das tempestades recém invocada.
“O senhor deveria ter uma noção melhor das capacidades de um Djin, em
que pese o evidente desgaste de sua figura material, parece-me um humano acima
da média em intelecto, afinal foi capaz de perceber que sou metade elfo e
metade Jin, logo, um djin, algo incomum para a maioria dos humanos. Aliás, Eu ouvi o termo apotecário? ” Agora era o Djin
que parecia estar exercitando sua curiosidade, fitando o ancião humano através
dos raios contidos no receptáculo de seu corpo.
“Eu não consigo lembrar exatamente o que transcorreu nos últimos tempos,
estou usando a magia inata de meu ser para tentar ativar a minha memória de
alguma forma, mas apenas informações básicas vêm a mim nesse momento, como o
conhecimento de alguns feitiços arcanos iniciais da escola do elemento do ar.”
Enquanto conversava com o humano, realizou diversos movimentos rápidos e
precisos com seus braços, apontando-os em determinada direção como se fossem
armas de longa distância prestes a alvejar um algoz. Na maioria das situações,
seria risível presenciar alguém se comportando de tal forma (salvo em uma
competição de dança, obviamente!), mas, no caso do recém encontrado Djin, a
cada esticada de braço, a energia de seu corpo elétrico parecia ser direcionada
incisivamente naquela direção, voando em velocidade avassaladora e produzindo
um zumbido similar ao de um trovão, contudo muito mais curto e sutil.
Para deslumbre do humano, que não era capaz de tirar os olhos do que
presenciava, ao menos uns 10 pequenos raios foram atirados pelos braços
elétricos do Djin, colidindo com a terra fofa a uma distância segura de ambos.
Parecia inebriado por seu novo amigo e pelo característico cheiro de ozônio
(algo similar ao odor de “terra molhada”) exalado por ele, que tinha ficado
muito mais intenso depois que o show de raios começou.
Logo após o último raio colidir com o chão úmido, passado quase 1 minuto
desde que o Djin havia mudado seu corpo para raio vivo, voltou a ser apenas uma
criatura material, seus cabelos prateados como a lua cheia e olhos da cor
púrpura novamente visíveis.
Ato contínuo, repetiu a dinâmica de poucos segundos atrás e,
surpreendendo novamente o velho, atirou mais uns cinco pequenos raios na terra
a uns 10 metros de distância, realizando sutis movimentos (que para o velho
claramente eram gestos arcanos, usados por praticantes para executar seus
pequenos milagres mágicos) com o braço inábil. Murmurou para si mesmo, mas em
som audível até para os ouvidos do apotecário: “Sim, mas é evidente! As
descargas elétricas são primariamente um ataque, o corpo de eletricidade
primordialmente uma defesa, não preciso deste para me utilizar daqueles! “
O djin parecia absorto em suas maquinações: “Sim, sim... A mana requer
energia do usuário para ser manipulada, isso é cristalino. Por mais que as
forças da criação do universo representem poder infinito, sua manipulação por
criaturas dotadas custa caro, normalmente”
Os segundos de silêncio foram demais para o velho, que pareceu gritar,
tamanha a excitação: “Olha, eu acho que posso lhe ajudar, Sr. Djin! Falando
nisso...” - seu tom de voz baixou imediatamente
- ... “onde estão minhas boas maneiras? Se meu falecido pai me visse
agora eu provavelmente seria repreendido, não me apresentei propriamente a um
Lorde...” “Me chamo Angus, sou um
apotecário com domicílio em Lainport, é uma honra enorme conhecê-lo, Senhor
Djin. “
O mago, agora, parecia entretido pela mudança de atitude do velho: “Ah! O pragmatismo simplificante da mente humana... os djins não são
exatamente lordes, a sociedade élfica apenas os conferiu
certo nível de status social por conta de nossa origem extraplanar, por
respeito a nossos ancestrais do ar.”
“É um prazer conhece-lo também, sr. Angus, infelizmente não sou capaz de
recordar meu nome, ainda, mas muitíssimo obrigado por me ajudar. Estou tendendo
a concordar que talvez esse encontro realmente não tenha sido mero acaso, apesar de ser
forçoso, para mim, acreditar
em qualquer tipo de predeterminação de destino."
"Predeterminação?!??" Exclamou o velho. "Não mesmo! Concordo que a ideia de que
nossos caminhos já se encontram traçados por entidades superiores não me
apetece, porém acredito que certos encontros são oportunamente arranjados pelo
universo."
Angus continuou: "naturalmente, o termo lorde não define a exata situação dos djins
no Primórdio, mas, entre os humanos e outras raças mais jovens do mundo, vocês
são conhecidos como os lordes magos da raça élfica, já que a maioria
são arcanos habilidosos, além de automaticamente respeitados por seu status
superior entre os elfos.
“Certo, suponho que seja melhor simplificar as
informações do que complicá-las, de uma forma geral. Veja bem, sr. Angus, eu
estou numa situação ainda bastante desfavorável, portanto lhe pergunto se seria
demais lhe pedir para ser guiado até Lainport, que parece ser a cidade mais
próxima.”
“Eu provavelmente seria assombrado pelo espírito de
meus ancestrais se me recusasse a prestar auxílio a alguém como o senhor, um
djin e mago habilidoso e, de quebra, bem educado e gentil!”
“Agradeço os elogios e o altruísmo demonstrado pelo
senhor…”
“Chega de formalismo, por favor! Me chame apenas de
Angus. Assim sou conhecido por todos: Angus, o velho apotecário de Lainport.”
“Claro… Angus, muito obrigado…” O djin novamente foi
interrompido pela empolgação do velho: “Não se preocupe com nada, você pode
ficar na minha casa até quando quiser, não é uma mansão, mas tenho um quarto
sobrando e talvez você se interesse um pouco por alquimia e herbalismo”.
Os substantivos “alquimia” e “herbalismo” pareceram ativar novamente
alguma coisa na mente do mago, que, a partir dali, passou a se recobrar dos
ensinamentos sobre as interações entre as diferentes formas da matéria, bem
como sobre a arte de se extrair milagres da flora natural.
Respondeu ao ancião: “Sim, definitivamente me interesso por ambos.”
“Perfeito!” Retrucou Angus. “Eu estava exatamente indo visitar um local
muito especial, a apenas umas duas horas de caminhada daqui, tenho certeza que
vai valer o seu tempo. Já ouviu falar de um vegetal, uma flor, na verdade,
conhecida como manaflower?
“Naturalmente, é um dos pouquíssimos vegetais, senão o único, que é
capaz de gerar e armazenar energia arcana pura.”
“Aha! Meu filho, você deve saber ainda mais sobre alquimia e herbalismo
do que eu, o conhecimento apenas precisa ser revivido dentro de sua cabeça.
Escuta, uma coisa eu sei, as manaflowers,
se induzidas no ponto de cocção correto, produzem uma secreção notadamente conhecida
por sua capacidade de regenerar memórias. Temos boas chances de encontrarmos
uma hoje e, quando voltarmos para minha estufa, farei o chá mais gostoso e
regenerativo que já tomou!”
“Hmmm, muito interessante. Então, você sabe onde encontrar uma manaflower, hoje?”
“Exatamente, esperei anos por esse dia. Fiz questão de manter meu
calendário atualizado e não confiar somente na minha mente desgastada.”
Enquanto falava, o apotecário parecia procurar alguma coisa no interior de sua
bolsa de ombro. Em instantes, emergiu com uma espécie de papel enrolado, que
procedeu a desenrolar e estender ao djin.
“Veja, é precisamente hoje o dia do florescimento, que terá seu auge
entre as 8:33 e 9:55h da manhã, momento perfeito para coleta do vegetal. Ainda
não são nem 7:00h da manhã, temos tempo de sobra para chegarmos no local
exato.”
“Estou lhe seguindo, Angus, vamos.” Respondeu rapidamente o djin. A
possibilidade de recobrar memórias e conhecimento através de uma flor mágica
deixou evidente qual caminho seguir, por enquanto. Além disso, a ideia de um
chá com as propriedades narradas pelo humano não parecia absurda de acordo com
seus próprios conhecimentos alquímicos, recém-recordados.
“Por aqui, então...”
Os dois, companheiros de viagem pelo acaso, continuaram por quase duas
horas de caminhada, em marcha lenta (na velocidade que permitiam as pernas de
Angus, o djin claramente diminuía seu passo para acompanha-lo no decorrer da
curta jornada).
Porém, apesar de mais devagar, Angus demonstrava disposição incomum para
a idade, o que impressionou o djin, enquanto ele próprio buscava um gole d’água
no cantil emprestado.
“Chegamos! Impossível de esquecer o cheiro desse lugar e a cor levemente
violeta de parte da vegetação rasteira, olha!” Novamente o apotecário parecia
empolgado demais para a idade, mas o djin realmente não pôde deixar de notar a
cor violeta de parcela da grama local e um cheiro particular, que não conseguia
associar a nada, mas que lhe era misteriosamente inebriante.
“Ótimo, eu vou encostar nessa árvore um pouco e beber mais água enquanto
o senhor se certifica da presença da manaflower,
preciso recuperar meu fôlego por um minuto.”
“Claro, não vou me afastar nem 50 metros. O que essa área tem de
especial, tem de pequena, e tenho certeza que é aqui. É bom que fique um tempo
sentado mesmo, já volto.”
O djin apenas aquiesceu enquanto o humano se afastava lentamente. Em instantes,
não era mais capaz de ver o velho perfeitamente, sua silhueta ficando
rapidamente nublada e ofuscada pela mistura da densa vegetação com os poucos,
mas intensos, raios do sol da manhã que encontravam espaço entre as copas das
árvores.
Em menos de um minuto, os dois não estavam mais à vista um do outro e o
djin aproveitou o silêncio para apreciar os sons naturais da mata. Percebeu,
também, que a vegetação local era consideravelmente mais densa do que havia
notado antes, mas o cheiro peculiar era o que continuava a chamar mais sua
atenção.
Fechou os olhos por um momento, queria direcionar todo o estímulo
possível ao olfato. Em seguida, deu alguns longos e profundos suspiros, puxando
lentamente o ar matutino.
Nesse momento, sua mente pareceu se conectar a algum evento esquecido de
seu passado.
Podia ver um local similar ao que estava segundos atrás, mas as árvores
eram significativamente maiores e num tom de verde mais vibrante.
Olhou os arredores nessa nova realidade, permanecia sentado e recostado
numa árvore, mas dois objetos peculiares se destacavam no seu campo de visão,
um acinzentado e outro claramente roxo, pareciam alinhados, a uma distância de
uns 10 metros de onde estava agora... a visão do djin parecia imperfeita e
precária e o local parecia ocupado por fina neblina.
Levantou-se e começou a se aproximar, o objeto cinza parecia tomar forma
pentagonal e, o outro, se revelava como alguma espécie de flor, que exibia uma
paleta de cores improvável de ser produzida pela natureza.
Uma lápide élfica... “...Alonen”. Era capaz apenas de distinguir essa
palavra na inscrição do epitáfio, mas o primeiro nome do morto permanecia
completamente nublado à visão do djin.
A menos de um metro, alinhada à lápide, jazia a flor mais bela que sua
mente era capaz de se recordar. Suas pétalas eram num tom violeta místico e
vivo, que parecia cintilar dependendo do ângulo do observador; seu núcleo,
completamente prateado, como se cada microsecção tivesse sido cuidadosamente
insculpida em platina por um mestre artesão; seu caule era longo e robusto, em
um tom azul profundo e escuro. O mais impressionante, porém, era a evidente
magia emanada do vegetal, pois um tipo de “halo” colorido (mas
predominantemente roxo) e visível a olho nu o envolvia.
Passado o deslumbre inicial com a flor, o odor do local, claramente
emanado pelo vegetal, mais uma vez dominou seus sentidos. Repentinamente, ecoou
na mente do arcanista a voz de alguém que parecia uma espécie de tutor,
dizendo: - a memória olfativa é uma das mais estimuláveis pelo cheiro original...
Ato contínuo, reuniu a integridade de sua fortaleza mental e tentou se
focar apenas no odor da manaflower, cerrando
novamente os olhos (o local já era silencioso por si só).
Em alguns segundos, sua mente foi invadida por tristeza profunda e
avassaladora. Mas não era só isso, também começou a se sentir confuso,
ludibriado, com raiva em relação a algo desconhecido... O que o odor característico
trazia de lembranças parecia estar vindo associado a um turbilhão de emoções que
desnorteavam o djin.
Então, abriu os olhos, não mais suportando aquelas sensações
desalentadoras. Fitou a inscrição na lápide mais uma vez, o primeiro nome ainda
turvo à sua visão, mas continuava podendo ver claramente a inscrição “Alonen”,
que, agora, por algum motivo, passou a associar a um nome de alguma família
élfica.
Ouviu um grito súbito, que pareceu insculpir a palavra - pavor - na mente
do mago. Abriu os olhos de novo e se viu encostado na mesma árvore de um tempo
atrás, com o cantil no colo, seu conteúdo escorrendo lentamente por suas
vestes.
Instantaneamente voltou a si e logo associou o berro recém escutado ao
velho apotecário. Catou rapidamente o cantil e se levantou em movimento único,
dirigindo-se na direção da voz.
Corria o melhor que seu físico permitia na direção donde parecia ter
vindo a voz, que coincidiu com a parte onde havia visto o ancião por último
antes de se adentrar na vegetação densa. “Estou na direção certa.” Ponderou.
Não muito depois, escutou outro berro, agora mais curto e abafado, porém
mais próximo e audível. Teve certeza que ouviu a palavra “orc” sendo falada na
língua dos humanos. “Droga! Preciso ir mais rápido que isso, aquele velho não
vai durar segundos se há um orc hostil por perto.” A sensação de urgência tomou
conta de si, queria chegar no apotecário e ajudá-lo, AGORA!
Felizmente, a adrenalina do momento funcionou como catalizador à
lembrança de um conhecimento de especial utilidade. Por pura memória muscular,
o mago realizou movimentos curtos e precisos com uma de suas mãos, de difícil
percepção ao observador médio, leigo à thaumatologia[1].
No mesmo instante, sentiu seu corpo se acelerar consideravelmente, capaz de
transpor longas distâncias em segundos.
Continuou velozmente em direção ao urro, abrindo espaço com as mãos
entre a vegetação densa e baixa.
Segundos depois, chegou numa pequena clareira, de menos de 5 metros de
diâmetro, onde podia ver Angus tentando escapar desesperadamente de uma
criatura humanoide: sua pele era verde, seu tamanho consideravelmente acima da
média humana ou élfica, sua complexão física, contudo, era o fato mais
assustador. O ser em questão era
composto de uma massa de músculos, veias protuberantes e visível ódio (ou
desespero, o djin não teve tempo de aferir precisamente).
O orc portava um grande machado, o segurando com ambas as brutais mãos.
Sangue vertia de sua boca, mas exalava fúria implacável em direção ao velho,
que agora encarava seu algoz de baixo, já que acabara de tropeçar durante a
fuga. Vendo a oportunidade única, o orc iniciou movimento em elipse com suas
mãos hábeis, balançando a lâmina na direção de sua vítima.
A fatalidade iminente só foi capaz de produzir uma reação no djin, que
vociferou: “pare agora, orc sujo” na língua comum.
Surpreendentemente, o orc pareceu acatar exatamente a ordem proferida,
parando repentinamente o movimento de seu machado, de modo que quase perdeu o
equilíbrio e foi ao chão.
A expressão do djin não demonstrava nenhuma surpresa com a súbita
mudança de atitude da criatura musculosa. Mesmo com a súbita ocorrência,
pareceu em paz com a ideia de estranhos acatarem seus comandos de maneira
precisa e imediata. Sim... O mago acabara de se lembrar da versátil escola
arcana do controle da mente. Esse conhecimento parecia, depois do momento de
necessidade, óbvio.
No calor do momento, através da invocação de curtas palavras em seu
idiota nativo, continuou instintivamente tentando enviar comandos mentais ao
algoz, todos com a mesma intenção: “fique parado e imóvel”. Novamente, o orc
parecia não conseguir agir fronte à presença do djin.
Logo notou a eficácia de seus feitiços de controle mental e a inércia do
inimigo, podendo analisar um pouco melhor o cenário e perceber que a criatura,
momentaneamente sob controle, estava seriamente ferida - sangue escorrendo de
um ferimento abdominal.
Em mais um momento de epifania induzida pela adrenalina do momento,
recordou-se de outro domínio arcano, o mesmo que já havia usado há menos de
minuto atrás - foi um feitiço da escola da movimentação que o fizera se
acelerar a caminho da clareira.
Mas tais conhecimentos mágicos podiam causar efeitos muito além de
simples aceleração de um sujeito...
Com gestos ligeiros e quase imperceptíveis, produziu novamente um
pequeno milagre arcano, enquanto parecia fitar os pés do orc.
A criatura, voltando a si logo em seguida, não mais demonstrava a
confusão mental de uns segundos atrás [2]redirecionando
sua fúria a novo alvo, o chamativo djin mago, que apareceu do nada para
estragar sua pilhagem e possível gole d’água, depois de horas vagando sozinho e
sedento.
Voltando imediatamente à postura de ataque, o gigante urrou e partiu
para cima de sua nova vítima, ao menos foi essa a ideia...
Logo no primeiro movimento de suas pernas, notou que havia algo errado
com o chão que pisava, pois, em um piscar de olhos, o orc se viu no mesmo nível
do solo, com a cara estatelada na grama fofa e a face apavorada do velho
novamente em seu campo de visão, mas agora não o via mais de cima, já que tinha
ido ao chão de maneira ainda mais desastrada que o próprio apotecário.
“Área escorregadia...” O nome básico do feitiço se materializou nos
pensamentos do mago, o que não o distraiu da ameaça iminente. Não satisfeito
com a atual precária situação do orc, procedeu novamente a controlar o
intelecto inferior da criatura, efetivamente embaralhando seus pensamentos e o
impedindo de sequer entender o que havia acabado de ocorrer. Pensou consigo
mesmo: “Creio que agora ele fique no chão por 4 segundos, no mínimo. Deve ser o
suficiente.”
Ato contínuo, proferiu, novamente, curtas palavras no idioma élfico,
gerando espontaneamente eletricidade na ponta de seus dedos (exatamente como
fizera há horas atrás), agora visivelmente apontados ao orc caído. Fez isso ao
mesmo tempo que se aproximou lentamente do alvo – não podia errar.
A criatura caída permaneceu mais um instante na confusão mental
magicamente induzida. Vendo a oportunidade, o djin se aproximou mais um metro
do alvo, o raio que “segurava” estava, visivelmente, mais intenso que no
segundo anterior e, agora, apontado em direção à cabeça do orc.
Num estrondo impetuoso e agudo, a eletricidade se desprendeu das mãos do
arcanista, acertando, em milésimos de segundo, a testa do orc desavisado, cuja
cabeça tombou no mesmo instante, fumaça negra emanando de suas narinas, ouvidos
e boca e com boa parte do torso superior também enegrecido...
“Angus! Você está ferido?” O djin indagava o velho, ao mesmo tempo em
que se certificava da morte do humanoide musculoso e esverdeado.
“Sim, sim... Digo: não, não estou ferido... o susto passou, meu filho,
obrigado.”
“Você realmente é um lorde mago, como os humanos dizem. Nunca tinha
presenciado tamanha graça no trato com uma criatura tão selvagem quanto um orc.
Serei eternamente agradecido a este filho do vento”
“Não seja tolo!” Esbravejou o arcanista. “Tive considerável sorte nesse
combate, apotecário. Apenas estou feliz de ter conseguido chegar a tempo, pelo
menos estamos razoavelmente quites agora, o senhor me ajudou e agora eu lhe
ajudei.”
“Quites uma ova, eu estou em dívida com você.” A voz de Angus adquiriu,
do nada, tom veemente. Continuou, então, o “sermão de idoso”: “acordar um
estranho e oferecer água não se compara a controlar e eliminar um orc como
acabei de presenciar...”
“Sabe no que realmente fomos sortudos?” O velho, já de pé, virou-se e
começou a caminhar em direção ao limite da clareira. “Essa belezinha continua
intacta.”
No calor do embate de poucos instantes atrás, o mago não foi sequer
capaz de notar um vegetal com coloração absurda, que emitia um evidente brilho
caleidoscópico na pequena clareira. Dirigiu sua atenção à planta, percebendo se
tratar, na verdade, de uma flor, num tom de roxo improvável, mas familiar.
Sorriu pela primeira vez desde que havia acordado. “A manaflower é de fato um deleite para o
olhar, Angus. É maravilhoso poder vislumbrar, mais uma vez, esse produto tão
exótico e deslumbrante da Mãe Natureza.
A mente do djin voltou, por um segundo, à clareira de outrora, onde
estavam a lápide e a flor...
“Aliás...” Mas o djin voltou a si, novamente fronte a Angus. “...Meu
nome é Olorin Alonen, muito prazer, sr. Angus de Lainport.”
A satisfação de recordar o próprio nome se misturava à uma inexplicável
sensação de perda...
Mas, por hora, o djin estava satisfeito com os recentes avanços, havia
recuperado diversas memórias em poucas horas desde o despertar súbito.
“Então, Angus, estou ansioso para ver o senhor realizando a coleta da manaflower.”
O apotecário apenas sorriu para Olorin e se agachou, iniciando o
trabalho.
[1] Termo usado pelos
magos e demais conhecedores da magia arcana que representa o ato de estuda-la
como ciência.
[2] A confusão mental causada pela magia do
djin, normalmente, só durava alguns instantes em qualquer alvo, já que se
tratava de feitiço básico do domínio da escola do controle da mente.