terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Os orfãos de Lemport- Parte 1

Thomas aos 18 anos
         
                 Lemport é uma região composta de diversas vilas e de uma cidade praiana, que leva o nome da região, cercada por enormes paliçadas de madeira, torres de vigília ocupadas por arqueiros elfos, e constantemente patrulhada por guardas humanos. Isso é o que diriam, que é o mínimo para sobreviver ao lado da vizinhança orc, dominada pelos Dentes Protuberantes. Qualquer um que esteja alistado em uma das guardas, possua propriedade em Lemport ou trabalhe para alguém que possua, está autorizado a resguardar-se atrás de todas essas defesas, mas a realidade não é a mesma para os habitantes das vilas espalhadas ao redor de Lemport, agricultores, pastores, criadores de gado, etc.
               Thomas era filho de um plantador de batatas, ele, seus pais e 6 irmãos dividiam uma pequena casinha numa vila ao redor da cidade mista de elfos e humanos. Seu pai fazia dinheiro suficiente para sustentar sua família e nada mais que isso, sem brinquedos ou ter o que fazer, Tom ocupava seus dias ajudando seu pai, e no restante, passava horas esgueirando-se por aí com sua pequena faca, tentando não ser visto e fingindo ser Kyrion Shadowblade (toda criança nascida em Lemport - especialmente as humanas - sonha em ser como um dos elfos heróis das lendas), aquele que supostamente invadiu a tenda do Senhor da Guerra Urgrosh, para assassiná-lo e acabar com a guerra. mas resolveu deixar o orc viver, por ser puro de coração.
                 Um belo dia, Tom andava sorrateiramente por dentro de arbustos ao lado de sua casa, estava quase chegando perto de sua irmã mais velha, que encontrava-se sentada numa cadeira de madeira, e ocupava-se em tricotar alguma coisa. Ela mal podia esperar pelo susto que levaria, era muito raro algum de seus irmãos o perceberem, e embora Carolyne tivesse uma audição aguçada, ela estava muito entretida com seus afazeres. Alguns centímetros apenas de pular pra fora da moita berrando, e sua irmã levantou subitamente, gritos podiam ser escutados vindo de algum lugar. Tom parou ali, assustado, e tentou espiar entre a vegetação pra ver o que acontecia, parecia que a própria terra estava tremendo, e os gritos não eram de desespero, pareciam de raiva. O pai de Thomas e seus irmãos saíram da casa, o patriarca carregava seu ancinho bem apertado na mão.
                   Em questão de segundos, Thomas começou a ouvir gritos de desespero e pôde ver quando outros aldeões vinham correndo e chorando, tentando fugir de um mar de músculos e ódio, os Dentes Protuberantes haviam chegado, o jovem garoto não conseguiu fazer nada além de tremer de dentro de seu esconderijo. Alguns aldeões tentaram lutar, eles sabiam que ninguém é capaz de fugir de um Dentre Protuberante a pé nas planícies, seu pai e irmão mais velho, chegaram até matar, ou ao menos nocautear um orc, Alexandre era já um homem formado, de ombros largos e munido de um longo gadanho, aproveitou que seu pai conseguira aparar o golpe de um orc com o ancinho, mesmo ao custo da arma improvisada ter partido em dois, e colocando toda a sua força, com um movimento amplo,  acertou o pescoço do orc, mandando-o para o chão na mesma hora e sujando tudo ao redor de sangue - uma das recordações de Tom desse dia, é a surpresa ao descobrir que o sangue deles era vermelho. Mas infelizmente para eles, havia muitos orcs, e em pouco tempo, de seu buraco na moita, Thomas viu seus pais e irmãos serem destroçados pelos machados enferrujados dos brutamontes.
                    Agora tudo fica um pouco confuso, talvez o garoto tenha desmaiado, ou talvez apenas ficado paralizado, mas quando conseguiu recobrar o controle sobre si, sua irmã estava pelada, toda machucada, de quatro no chão, com um orc cheio de cicatrizes, tripas e sangue violentando-a. Cada vez que o orc fazia força, o rosto de Carolyne entrava no arbusto, e todas às vezes, independente do quanto gritasse, ela sorria para seu irmão. Quando o orc largou-a, e outros 3 disputavam para ver quem seria o próximo, ela juntou suas forças e sussurrou para seu irmão mais novo, que estava quase tendo um ataque de choro:
                    - Fique escondido, meu bem, vai ficar tudo bem, você é maior que tudo isso. Vá para Lemport, você vai se virar por lá e depois eu vou encontrá-lo.
O garoto respondeu com voz chorosa, limpando seu rosto para impedir sua irmã de ver as lágrimas, ele não falou exatamente baixo, mas no momento os Orcs gritavam uns com os outros.
                    - Eu....eu....eu não posso ir pra lá, eu...a gente... não tem casa lá.
Carolyne abriu então o mais belo sorriso de sua vida, colocou as mãos no rosto do irmão e disse com mais convicção que que o próprio vento.
                    - Você merece morar por lá..... você merece morar até no castelo do rei, você pode tudo, vá pra lá, você vai conseguir o que quer e depois eu vou encontrar você...agora, vá embora agora, não olhe pra trás.... - pegou a pequena faca de seu irmão que estava no chão, empurrou ele com a outra mão e ajoelhou-se gritando, fincando a faca fundo no joelho de um orc. Thomas já esgueirava-se sem olhar pra trás, ele ia em direção a Lemport, não podia mais ver sua irmã ou os orcs...mas os gritos, esses gritos dela, ele nunca mais esqueceria.


                      Entrar em Lemport foi fácil, várias vilas em volta haviam sido atacadas, e uma série de refugiados acumulou-se nos portões da cidade portuária. Os guardas da tropa interna fizeram todos entrar ordenadamente, e foram aos poucos ajudando a tratar ferimentos, distribuindo água e comida e provendo local para passem a noite. Thomas, embora fosse novo, não recebeu nenhuma atenção especial e apenas foi com o fluxo. Alguns dias se passaram, até numa manhã, os guardas juntaram todos refugiados e avisaram que teriam agora que voltar pra suas vilas, mas que seriam escoltados por Guardas da tropa externa. Aquilo era esperado pelos camponeses, que trataram de se arrumar, mas Tom não sabia disso....Tom não queria voltar a morar lá fora, onde os orcs podiam atacar, além disso, por menor que fosse a chance, todos dias ele esperava que sua irmã fosse aparecer e abraçá-lo mais uma vez.
                      Os guardas ordenaram todos em fila, e eles começaram a dirigir-se para os portões da cidade, o garoto, desesperado, assim que teve uma chance, fingiu novamente que era kyrion e esgueirou-se pra trás de uma caixa em um beco, depois escalou uma casa e observou enquanto saíam da cidade. Os guardas não se importavam de manter uma contagem, Lemport não aceitava mendigos, e eventualmente, pessoas sem residência ou registro de trabalho eram encontradas e re-alocadas para uma das vilas próximas. Tom estava sozinho agora naquela cidade, e teria que aprender a sobreviver nas sombras.
                     Sem muitas coisas que um indigente pudesse fazer, Thomas logo recorreu a pequenos roubos, pegava uma torta da janela de um casal elfo, entrava na sala de um velho dormindo e lhe roubava o queijo, e às vezes esgueirava-se pelas mesas ocupadas de uma taverna, pegando qualquer coisas que caísse no chão, ou estivesse ao alcance das mãos, depois de uns 2 meses naquele processo, ele já havia descoberto aonde podia roubar, e quem devia evitar, pois o dia a dia de um ladrãozinho em Lemport é cheio de cascudos, chutes na bunda, tapas na nunca e as eventuais surras, era mais importante ser esperto do que rápido. Além disso, Tom descobriu que havia um bom número de indigentes vivendo na cidade, como ele, roubavam o que podiam aqui e ali, dormiam em telhados, armazéns, becos escuros, barcos que ficaram muito tempo na cidade, e até mesmo casas de pessoas que estavam viajando, Tom os chamava de fantasmas, todos sabiam que existiam, mas a maioria fingia não ver, e os fantasmas tinham um líder.
                     Orelhudo era um meio-elfo, líder do bando de criminosos da cidade (é importante notar que a Mão Negra não estava em Lemport, ela nunca havia conseguido firmar-se por ali, tendo seus representantes sempre sido achados e presos pela Guarda Interna, sendo que o esforço acabava não valendo tanto à pena, devido aos ataques constantes de orcs, a única presença da Guilda era no porto, aonde de toda forma é o local de maior concentração de gold da cidade.), e ele não gostava de novatos, mais pessoas praticando delitos chamavam mais a atenção dos guardas, e orelhudo não queria isso. Thomas descobriu isso da pior maneira, depois de roubar um colar de uma elfa, correr pro beco, pular um muro e dobrar uma esquina, foi recebido com um soco na boca que lhe custara dois dentes. A gangue do orelhudo tinha descoberto ele, e agora os fantasmas estavam ali para dar um recado. Eles mais bateram do que falaram, mas Tom entendeu a mensagem, ou ia embora da cidade, ou na próxima vez que o vissem, seria seu fim.
                      É claro que ele cogitou fugir da cidade, mas no último instante desistiu da ideia, ele merecia morar ali, ele merecia coisas boas, e sua irmã poderia chegar. Ele apenas não podia ser visto pelos fantasmas, teria que encenar ser Kyrion o tempo todo, e assim o fez. Thomas passou a basicamente viver nos telhados, dormir durante o dia em buracos escondidos e só sair à noite. Se conseguia comida, ele voltava para seu buraco e lá ficava até que precisasse de mais comida, ele não perdia tempo olhado coisas, não perdia tempo tentando escutar os bardos nas tavernas, ou observando os que chegavam pelo mar, ou até mesmos os incríveis elfos da tropa externa, não, o garoto estava agora em modo de sobrevivência, funcionando de maneira otimizada para isso.
                      Alguns anos depois, agora com 14 anos, tinha dado a sorte de ouvir a conversa de um mercador com o ferreiro, e descobriu que o homem ia viajar, ficar 3 meses fora. Descobriu onde era sua casa, esperou que se fosse e entocou-se ali. O mercador tinha bastante coisa valiosa que Tom usou pra trocar de noite por comida e água com marinheiros recém-chegados à cidade, e então se deu 3 meses de férias, podendo dormir entre quatro paredes, numa cama confortável, sem acordar a cada 30 minutos para espionar ao redor. E foi numa noite enquanto o rapaz dormia em sua cama confortável que ele ouviu barulho vindo de fora, Thomas tinha a audição extremamente aguçada, e estava acostumado a despertar sob o menor barulho, chamou a persona de Kyrion, envolveu-se nas sombras e foi espiar pela janela que dava para um beco sem saída.
                      Orelhudo e mais 4 amigos estavam chutando alguém que contorcia-se no chão, as roupas eram boas, as botas também, e mesmo sendo burro, o líder da gangue logo reparou nisso e tomou tudo que o garoto tinha, deixando-o apenas de ceroulas. Devia ter a idade de Thomas, mas era um pouco mais alto e bem mais magro. Cabelos e olhos pretos, covas nas bochechas, e um olhar de coelho assustado...olhar de presa. Depois de surrar e abusar do garoto, os fantasmas deixaram claro pra ele que se o vissem novamente ali, coisas piores iam acontecer e foram embora. O estranho ficou ali, nu, em posição fetal, uma poça de sangue, sem nem forças pra chorar, ele apenas gania, mas isso não era da conta de Thomas, que voltou para sua cama, cobriu-se e tornou a dormir, como se nada tivesse acontecido.
                       Acordou na manhã seguinte, foi até a sala, pegou pão e salame e começou a comer enquanto lia um livro do mercador. Lia no sentido de virava as páginas, pois Tom não sabia ler, embora quisesse muito, e estivesse tentando aprender sozinho - o que mostrava-se completamente improdutivo. Não sabe exatamente o que foi, chame isso de sorte, instinto ou intuição, mas resolveu olhar pela janela onde havia acontecido a confusão de madrugada, e lá estava o garoto, pelado, ensanguentado, dormindo na mesma posição...na janela da sua casa, arriscando alguém ver, um guarda vir checá-lo e bater na casa pra perguntar se quem mora ali viu ou ouviu algo. Thomas ficou branco, suou frio, abriu a janela, acordou o garoto com sons como se chamasse um gato ou cachorro, convidou-o para a casa, pela janela mesmo, deu a ele roupas do mercador, deixou que comesse e bebesse e durante esse tempo todo permaneceu calado apenas estudando o jovem magro. Ele estava com a cara inchada, um olho roxo, dentes faltando, mas de alguma forma....alguma forma que Thomas não sabia explicar, ele tinha o mesmo brilho dos elfos, o mesmo brilho que Tom tinha certeza que Kyrion, Samuriel, e os outros grandes heróis tinham. Finalmente depois de comer muito, o garoto magro falou, com uma voz mansa e sem graça
                       - Oi, meu nome é Brucington Dumach, muito obrigado por me ajudar.

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