terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Relíquias dos deuses 5 - O Cachimbo de Yaba

As fogueiras do acampamento estavam altas e a lenha crepitava; ciganos, vagabundos e ladrões era do que os chamavam conforme os nômades iam de um canto para outro sempre com música, dança e risadas altas. As faíscas que saíam das fogueiras lembravam vaga-lumes, ou talvez pequenas fadas para os que já tinham o cérebro encharcado pela bebida e não sabiam mais se o chão estava sob seus pés ou acima de suas cabeças onde brilhavam aquelas pequenas jóias que chamavam de estrelas.

-Cristian, venha cá... – o homem mais velho chamou, a barba mal feita e um cachimbo na boca ainda apagado conforme se sentava perto da fogueira. – Não tinha dito que ia viajar?

-E vou, estou esperando o acampamento adormecer... Se minha mãe notar que me vou faria uma cena. – o jovem respondeu, nem barba tinha, mas tinha uns olhos verdes que herdara da mãe que dançava há duas barracas de distância – Não contou pra ela, contou?

-Não, claro que não... Você sabe que ninguém gosta mais de viagens do que eu...

Ele riu por trás da barba mal feita, os pequenos olhos escuros como dois besouros na escuridão enquanto procurava nos bolsos por algo, sempre sumia algo naquele grupo de pessoas. Ciganos, vagabundos e ladrões, alguém sempre pegava o que não era seu para suprir a fama do grupo nômade. Já que não achou, mordeu a ponta do cachimbo impacientemente conforme o batia de leve contra os dentes pensativo.

-Julius... Me conte outra vez como ganhou esse cachimbo. – Cristian pediu sentado ao lado do outro homem, enquanto mais velho fitava a fogueira o outro fitava o cachimbo de maneira curiosa.

-Eu já contei cem vezes...

-Conte cento e uma... Como um presente de despedida! – o jovem insistiu.

-Eu era tão jovem e chato quanto você, só que viajava sozinho desde que me lembrava... Fiz uma parada numa dessas cidades movimentadas para encher a cara na taverna mais tranqüila que tivesse... – o homem parou e mais uma vez revirou seus bolsos, encontrou o que queria e apertou uma caixinha preta na mão.

-A Boca do Ferlix... – o jovem falou com olhar sonhador.

-A Boca do Ferlix... – o outro concordou com a cabeça – Um desses lugares que pessoas normais tem medo de beber achando que tem veneno nas canecas...

Ele fez uma pausa, seus olhos se moviam nas chamas como se enxergasse dentro delas a taverna que visitou há tanto tempo. Ainda mordia o cachimbo, parava de morder e o batia de leve nos dentes amarelados pelo fumo, olhos de besouro e barba mal feita, as chamas dançavam como as dançarinas da taverna. Cristian parecia buscar essas memórias dentro dos olhos de Julius, mas então cortou o silêncio.

-E depois?

-Depois acabei que bebi demais e fui parar na mesa de um bardo, ficamos jogando cartas e rindo... Nossas risadas enchiam a taverna...

-E ele gostou de você...

-Ficamos amigos sim... Éramos dois pobres numa taverna, causando muito barulho e sem lugar para ir quando amanhecesse. – Julius parou para olhar a caixinha e deu uma risada baixa de saudades – O taverneiro nos expulsou aos berros!

Mais uma pausa, dessa vez para deixar dois homens que se esmurravam passar e retornar a música ambiente da fogueira crepitando, das chamas que dançavam e de grilos que pareciam se entreter uns com os outros não muito longe. A noite era tranquila, as pessoas que a agitavam como pedras caindo na água. Cristian deitou na grama, os olhos verdes refletindo as estrelas no anseio por ter também histórias para contar um dia.

-Ele me convidou para um trago... Disse que como eu amava viajar... – Julius continuou e abriu a caixinha, só restava um fundinho de ervas que ele socou dentro do cachimbo enquanto narrava sua história – Me fale o que é viajar para você e lhe dou meu bem mais precioso, foi o que ele me disse. Eu falei...

-Viajar é acordar e dormir nos braços de sua amante sabendo que ela não irá pedir satisfações quando você chegar atrasado. – Cristian citou a frase que já conhecia rindo enquanto Julius enchia seu cachimbo.

-Ele também riu...E me deu o cachimbo e esta caixinha... – Julius jogou a caixinha vazia para Cristian que a apanhou no ar.

-Queria ter histórias para contar de minhas viagens também... – Cristian falou com uma pontada de inveja enquanto rodava a caixinha em suas mãos.

-Você vai ter garoto e para garantir isso... Pode ficar....
Cristian não acreditou em seus olhos quando viu Julius esticar a mão lhe entregando o cachimbo, piscou algumas vezes enquanto colocava a caixinha no bolso e pegava o cachimbo que cheirava a pó de estrada a e ervas queimadas. Incerto do que fazer por nunca ter fumado, ficou um tempo só olhando o cachimbo, reparando como havia o desenho de pequenas rodas dos dois lados.

-Tem certeza? É seu último fumo...

-Eu já tive minhas histórias e viagens... – Julius deu um tapinha no ombro de Cristian e se levantou indo se deitar.

Entre a gratidão e a incerteza Cristian acendeu o cachimbo, sentiu o cheiro do fumo lhe invadir os pulmões e o fazer sentir-se um tanto quanto leve. Sentia uma vontade maluca de sorrir, não apenas por ter ganho um presente, mas também por algo estar dizendo para seu cérebro que a vida era linda e ele era feliz. Levou o cachimbo à boca, a fumaça saindo e entrando, as estrelas brilhando no céu noturno. As fagulhas da fogueira realmente pareciam fadas.

As chamas dançavam e as fadinhas também, dançavam tanto que Cristian imaginou que pudesse dançar com elas, com outro trago soprou a fumaça que também dançava, todos dançavam como as dançarinas da Boca do Ferlix. Deu risada de si mesmo, estirado na grama com o cachimbo na boca, os olhos verdes brilhando felizes como uma criança, prontos para pisar no mundo e dançar encima dele. Piscou por um momento e jurava que os astros no céu piscavam também, os sons da noite foram ficando mais baixos e tudo se agitou, risos, danças, passos na terra, cantoria alta!

-Minhas viagens... – Murmurou com o cachimbo entre os dentes.

Quando piscou de novo viu que o resto de fumo tinha acabado, a fumaça estava se dissipando tão rápido quanto subiu para seu cérebro, desapontado bateu o cachimbo entre os dentes, então sentiu uma mão em seu ombro, poderia ser sua mãe o mandando ir dormir, ou talvez Julius tivesse voltado. Pisou na realidade e ao olhar a origem da mão notou que seu redor estava mesmo mais barulhento e que a grama virara madeira.

-Posso lhe ajudar senhor? – Uma ferlix perguntava com duas canecas de cerveja na mão livre.

-Quem é você? – Cristian perguntou se levantando e notando que estava deitado encima de um balcão.

-Quem é “você”, estranho?” – a ferlix perguntou o encarando ferozmente por trás de um sorriso de presas afiadas.

-Cristian... Onde eu estou?

-Na Boca do Ferlix... – ela apontou o redor, dançarinas, bêbados, homens jogando cartas, mesas que pareciam prestes a ceder e cadeiras com pelo menos uma perna quebrada.

-Por Yaba, que viagem... – Cristian levou as mãos a cabeça, como quem jurava ter adormecido na grama e estar sonhando, foi andando entre as mesas, até parar na frente de uma em especial e distraidamente pegar o cachimbo, será que era sonho... Olhava o cachimbo perdido.

-Belo cachimbo... Foi Julius que lhe deu? – um bardo perguntou embaralhando algumas cartas velhas.

-Desculpe, eu lhe conheço? – Cristian perguntou com uma dor de cabeça que só podia ser comparada a uma ressaca brava.

-Não. Mas eu conheço meu cachimbo... – ele sorriu, com um sorriso brilhante e jovem que fez Cristian sentar-se desajeitadamente encima da mesa. – Surpreso?

-Isso faz anos... Você....Você não devia ser mais velho? Claro que não, eu estou sonhando...hehehe... Sonhando... – Cristian estava dando aquelas risadas nervosas típicas de quem acaba de enlouquecer e isso só fez o Bardo sorrir gentil. – Prazer, senhor bardo... É uma honra sonhar com você...

-Não se preocupe garoto, você se acostuma depois de algumas vezes... – O bardo se levantou e entregou para Cristian um pacotinho com algumas ervas dentro – Manera com isso, viu garoto? Fumar faz mal pra saúde...

-Claro... Não se preocupe senhor, quando acordar eu vou lembrar disso... – Cristian riu apontando para o bardo, com o saquinho nas mãos, ele parecia tão borrado e surreal.

-Se cuida, garoto... – o bardo se virou para a taverneira – Até mais, Celia...

-Até, Yaba... – despediram-se.

-Do que você chamou ele? – Cristian perguntou aos berros para a ferlix.

-Garoto, se você bateu a cabeça devia ir à um curandeiro, não pra taverna... – ela respondeu dando as costas.

-Yaba...hehehe claro...Yaba... Eu queria estar sobre a grama fofa agora...

Cristian continuou rindo nervosamente, seus olhos viraram nas órbitas e seu corpo caiu desmaiado no chão duro e sujo de madeira da taverna. A Boca do Ferlix era uma história, Yaba era um Deus...e ele... Ali caído no chão era só mais um bêbado, maluco... Cigano, vagabundo e ladrão, mais tarde ele se acostumaria ou enlouqueceria de vez e morreria na estrada.

Nenhum comentário:

Postar um comentário