terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Os Orfãos de Lemport - Parte 2

                 
Brucington aos 18 anos




                     Benharch Dumach era o primeiro filho de um grande comandante, e por mais que a vida toda tivesse servido seu lorde e rei e feito tudo que tinha que fazer, ele simplesmente não tinha aptidão para os jogos políticos, e por isso mesmo após seu pai ter sido feito "Ser" mais de 50 anos atrás, ele continuava a ser apenas um ser, nunca tendo chances para se provar digno de terra, guarnições e responsabilidades de um lorde. Talvez tenha sido por isso que ele tenha concordado quando os Marillion lhe ofereceram a chance de assumir tropas e pacificar um território, e em troca de um bom serviço, ser nomeado lorde, o problema, é que a área a ser pacificada ficava antes das vilas e aldeias que cercam Lemport, na cara do territórios dos orcs, e desde que as pessoas se dão por conta, as planícies são território dos orcs e não dá pra tirar eles de lá, todos sabem disso.
                   Ainda assim, Ser Benharch estava confiante, ele não era chamado de "O Audacioso" à toa por seus companheiros. Ele assumiria a guarnição, fortificaria o local, e tornaria-se lorde, deixando um legado incrível para seus filhos. Ele era afinal um bom guerreiro e se considerava um ótimo estrategista, apenas um pouco abaixo de seu pai, mas ele ainda tinha muita coisa pela frente, e se Belliard permitisse, ele um dia superaria o antigo comandante. O território concedido a ele era vasto, e era basicamente no caminho usado pelos orcs para raidar Lemport e suas vilas próximas, foram cedidos a eles vários homens, pelo menos 40 soldados, 5 desses cavaleiros, 5 desses arqueiros e além dos guerreiros, também lhe foi colocado em comando diversos construtores, que trataram de erguer paliçadas, primeiro precárias, mas que aos poucos foram sendo reforçadas.
                  Ser Benharch já estava ali há 5 meses, e por enquanto nenhum ataque de orcs, nem mesmo às vilas que ficavam após sua "cidade" que ele batizou de Escúdia. Foram avistados alguns orcs scouts, mas Benharch Dumach imaginava que a visão de agora imensas paliçadas reforçadas com torres para arqueiros e seus portões gloriosos assustavam os orcs. Até passar por eles para chegar nas vilas sem defesa seria complicado, pois teriam que fazer uma grande volta, e mais que daria tempo para Benharch enviar um scout à cavalo e avisar da raid eminente. Escúdia estava orgulhosa e todos homens constantemente homenageavam o seu comandante, futuro Lorde Dumach.
                   Numa certa noite enquanto Benharch jantava com sua família, sua bela esposa Rosa Dumach, seu filho mais velho Wayneingrar Dumach, com apenas 15 anos mas já forte como touro e muito habilidoso com a espada e seu mais novo, Brucington Dumach, que nasceu magro e doente, e tendo sido demasiadamente mimado pela mãe, mal sabia usar uma espada, quase não tinha músculos e a única coisa que fazia o dia todo era ler, qualquer livro que pudesse comprar. Benharch já havia deixado avisado que quando ele virasse lorde, enviaria Brucington para ser tutelado sob alguma outra casa nobre, e ele teria que aprender a lutar na marra, a vida boa e os livros acabariam em breve, e por mais que Rosa protestasse, cada vez mais parecia que iria acontecer.
                   A porta do salão abre-se com força, o homem que entra no salão sem fazer qualquer mesura ou pedir permissão dirige-se até o lado da mesa, ele é mais baixo que Benharch, porém de ombros mais largos. Uma barba rala cobre seu rosto adornado por sobrancelhas negras e grossas, o cabelo da mesma cor, comprido, porém preso em um rabo de cavalo por uma faixa de couro. Ele interrompe os Dumach e fala com uma voz grossa como a de um orc.
                  - Ser Dumach, venha até a torre de vigília, orcs no horizonte.
                  - Gideon, isso é jeito de tratar seu superior? Não vê que agora estou... - o humano chamado Gideon interrompe Benharch com um forte tapa na mesa de madeira que faz Brucington derramar sua bebida em seu colo. - Pelos diabos, Benharch, eu não estou de brincadeira, venha logo ou pode ser tarde demais.
Benharch Dumach não gostava muito do capitão presunçoso que lhe fora designado, mas sabia que Gideon Skirmisher não era um homem de exagerar as coisas. Em um movimento só, ele levantou-se da mesa, pegando o machado que estava apoiado na cadeira, e dirigiu-se à sua família sem olhar pra eles, enquanto saía pela porta junto com Gideon.
                   - Rosa, leve os dois para nosso quarto e tranque-se lá, eu vou mandar dois guardas para a porta, em breve me junto a vocês - aumentou ainda mais a voz, abafando uma reclamação de seu filho mais velho. - Waynengrar, isso é uma ordem, você protege sua mãe, vá.
                    Quando chegaram na torre de vigília, a maior parte dos soldados já estava acordada e colocando suas armaduras, Benharch segurou o desespero dentro de si, e falando com a voz mais sóbria possível, ficou de costas para a imensidão da planície e dirigiu-se aos seus homens logo abaixo.  - HOMENS, HOJE FINALMENTE SEREMOS COLOCADOS À PROVA, SEREMOS O BASTIÃO QUE SEPARA LEMPORT DESSES SELVAGENS - inspirou fundo aproveitando para olhar nos olhos de seus homens e continuou, um pouco mais baixo agora que tinha a atenção de todos. - Eles podem ser mais, mas nós lutamos para defender nossas casas, nossas famílias, nós lutamos por todas as vilas e aldeias desprotegidas além de Escúdia, fiquem comigo, e os liderarei para a glória, SEUS NOMES SERÃO ESCRITOS NA HISTÓRIA. -  Gritos acompanharam  o discurso de Ser Benharch, homens gritavam o que fariam com os orcs, como os matariam, e como eles não tinham chance contra um exército humano coordenado. Ser Benharch no entanto, deu mais uma olhada pra trás. As planícies estavam acesas pelas tochas carregadas pelos Dentes Protuberantes, e eles eram mais do que Dumach podia esperar.
                    Ele e Gideon saíram da torre de vigília para preparar-se, quando finalmente afastaram-se dos homens, o Skirmisher interrompeu-o com a mão no ombro e disse olhando em seus olhos.
                    - Benharch, deixe que eu tomo conta da defesa, pegue sua família e evacue por trás para Lemport. - o Ser ficou olhando incrédulo para seu capitão, e quando percebeu que não havia nada a mais, explodiu.
                    - Você está louco homem? Eu sou o comandante aqui, eu quem dou as ordens aqui, eu ficarei, nós vamos lutar, e vamos defender a cidade. Cada homem nosso, armadurado, e com armas e escudos bons, vale mais que 5 daqueles bárbaros fedorentos, com suas armaduras de pele e seus machados enferrujados
                     - O problema, comandante... - Gideon chegou mais perto, encarando os olhos do homem mais alto, fazendo questão de mostrar o desdém que tinha pelo outro ser o comandante dali - é que temos 40 soldados, se mobilizarmos todos os camponeses, chagaremos a uns 150 homens, o que ainda será menos da metade dos orcs. - Os Skirmishers eram uma família de exímios guerreiros, mestres em todas armas, e eram treinados geração após geração, mas Gideon sabia que mesmo ele num campo aberto, tentando defender-se de ataques simultaneos de 20 orcs, uma hora cometeria um erro, e isso era o que bastava, apenas uma machadada de um dos Dentes Protuberantes. Ele preferia que o comandante evacuasse, e ele iria em seguida levando aldeões e alguns homens.
                     - Gideon, se você estiver com medo, eu permito que você fuja pra Lemport, mas eu vou ficar e lutar. - os olhos dele eram pura determinação, Skirmisher sabia que não adiantaria discutir.
                     - E eu ficarei ao seu lado.
                     A batalha correu melhor do que Gideon esperava, mas os orcs conseguiram romper as paliçadas, e o mar verde de músculos invadiu Escúdia, os camponeses lutaram ao lado dos soldados, mas só serviram pra deter um pouco o avanço dos orcs, ainda assim, a esperança das mulheres e crianças fugirem continuava, e fazia os homens darem tudo de si. Benharch Dumach lutou lado a lado de Gideon e de seus homens, até ser acertado por uma machadada que abriu sua barriga, e não conseguir mais ficar de pé pra lutar. Gideon pegou o comandante, colocou nos ombros e correu para a casa do Ser, era a hora de pegar a família dele e escapar dali.
                      Ao entrar na casa, deparou-se com empregados mortos, correu o mais rápido que pode com Dumach gritando pra ele o tempo todo que ele tinha que salvar Rosa e seus filhos. O Skirmisher finalmente alcançou o quarto de Benharch e viu a porta escancarada e dois guardas mortos na entrada. Invadiu o quarto jogando o Ser para o chão, e sacando uma espada bastarda e um martelo de batalha. Rosa estava morta, e o corpo de Wayneingrar estava estirado no chão, sua cabeça, na mão de um orc cinzento, de cabelos vermelhos e espetados. Um sorriso de escarnio no rosto, e diferente dos outros orcs, uma armadura metálica, tão branca quanto a lua. Na outra mão ele segurava um machado flamejante, bem próximo ao rosto de Brucington que jogado no chão, contorcia-se e tentava encolher-se, como se isso fosse ajudar sua situação.
                    - Ora, ora, vocês demoraram pra chegar aqui. Eu até já matei o irritadinho ali, e vocês nem estavam aqui pra me ver arrancar a cabeça dele. - o sorriso continuava no rosto do monstro, que virou de costas para Brucington e caminhou na direção de Gideon. - Qual vai ser, Skirmisher, você vai lutar e morrer aqui ou vai pular pela janela, correr e morrer próximo da saída da cidade? MUAHAHAHA.
O orc ria com os braços abertos, enquanto Gideon calculava o que fazer, mas foi Benharch quem agiu primeiro, ele já estava sentado e puxando força do ódio que sentia por aquele monstro, ele segurou firme seu machado, e atacou jogando o corpo pra frente e acertando a coxa do orc armadurado, seu machado fincando bem fundo, arrancando um grasno de dor do oponente.
                     - O QUE? BENHARCH? FILHO DA PUTA - o monstro cinzento largou a cabeça, e enquanto tombava, girou o seu próprio machado usando uma mão só, a arma em chamas acertou Dumach no ombro, abrindo-o até o estômago e matando-o na hora. - VOCÊ NÃO DEVIA FAZER ISSO, CARALHO, MINHA PERNA, PORRA.
                      Gideon aproveitou que o orc teria que levantar-se e avançou rápido na direção da criança no chão, golpeando o orc com sua espada no braço e girando o martelo por cima de sua cabeça, mirando a do oponente desconhecido, mas o orc era muito mais hábil que o guerreiro imaginava e aparou o primeiro golpe com o machado enquanto tirava a cabeça do segundo sem muito esforço.
                    - Não adianta, seu merdinha - o orc era puro ódio, bufando enquanto levantava-se, com Gideon fora de seu alcance - , no fim, vai dar na mesma, vocês dois vão morrer, seus merdas, e em um movimento surpreendente rápido, colocou-se de pé e girou o machado na direção de Gideon, esse que ainda recuperava-se de seu movimento, não estava em posição para aparar, mas preparou-se para esquivar para a direita, quando percebeu que o golpe não era destinado pra ele e sim pro garoto ao seu lado. Sem pensar duas vezes, ele jogou o corpo na frente do golpe, e o machado quebrou sua clavícula e deixou seu peito aberto, um cheiro de carne queimada tomou conta do quarto. O capitão largou suas armas, agarrou Brucington e pulou pela janela, atravessando a armação de madeira e caindo na grama fofa, lá fora, ele respirou fundo, segurou melhor o garoto, tentou ignorar seu ferimento e correu na direção do portão sul da cidade, enquanto ouvia o orc gritar obscenidades e reclamar de sua perna.
                     Gideon conseguiu sair da cidade e andar quase 100 metros antes de colapsar, o garoto já andava atônito ao seu lado e tentou em vão acordá-lo, estava desesperado tentando arrastá-lo quando uma carroça vinda de Escúdia, guiada por 2 homens, um deles vestido como soldado, e puxada por um burro parou ao seu lado. Os homens reconheceram Gideon Skirmisher e o colocaram na carroça, o garoto também subiu e eles partiram para Lemport. No meio da viagem, Gideon recobrou a consciência por breves segundos antes de morrer, e tudo que conseguiu dizer foi para que levassem o garoto para as autoridades, e que pegassem um pergaminho em seu bolso. Um dos homens, - o que não era soldado, o único deles que sabia ler - pegou o pergaminho e era uma carta com selo dos Skirmishers explicando que ele estava sob serviço dos Dumach e que deveria defendê-los. Os homens ligaram as coisas e fizeram o que qualquer homem razoável naquela situação faria, pilharam o corpo de Skirmisher e tiraram do garoto seu ouro e tudo que o ligasse aos Dumach.
                     - Escuta aqui, seu moleque de merda - disse o homem de queixo grosseiro e uniforme de soldado, cuspe voava na cara de Bruncington a cada palavra que ele proferia -, teu pai é um merda, e não deu ordem de recuar, por causa disso minha mulher e filhos morreram, por causa disso todos morreram, eu devia era rasgah você todinho agora. - e sacou um facão, empurrando-o contra o pescoço do jovem -, mas num vô não, porque sô melhóh que isso. A gente vai deixá você perto di Lemporti e de lá, tu faz tua vida. Mas se tu falah pra alguém o qui aconteceu aqui, eu vou te achah e enfiah essa faca no meio do teu cu, entendeu? Eu tenho amigos guardas por lá e vou sabeh.
                       O garoto assentiu calado com lágrimas escorrendo dos olhos, e como prometido foi largado pra trás, próximo a Lemport, a carroça deles continou na direção da cidade, e andando, ele chegou em 8 horas, foi recebido junto com vários outros refugiados que ocupavam os portões da cidade mista, e quando finalmente entrou nela, não sabia o que fazer. Recebeu comida, cobertores e um local pra dormir, e assim o fez, dormiu a manhâ e a tarde toda, só acordando de noite. Sem saber o que fazer, ele resolveu sair dali, sabia muito bem que aos refugiados não era permitido ficar por muitos dias, e acreditou que o melhor a fazer seria esconder-se pelos becos e locais escuros da cidade, até achar alguém que conhecesse de vista, seu pai tinha alguns contatos na cidade. Preferiu evitar as tavernas e autoridades também, temendo encontrar aquele guarda ou um de seus amigos, ele tinha que achar diretamente alguém que o reconhecesse.
                        Brucington calculou que poderia sobreviver por muito tempo assim, se fosse aos poucos trocando peças de suas roupas - que eram finas e de ótima qualidade - por mantimentos conforme fosse mostrando-se necessário. Enquanto caminhava no escuro dirigindo-se para o porto, ele até já formulara um plano, trocaria apenas com aqueles de fora da cidade, evitando ao máximo possível ser descoberto ali. Daria tudo certo, ele sobreviveria, seu irmão, mãe, pai e também Gideon não morreriam à toa, e foi durante esse pensamento que mãos fortes o jogaram pra dentro do beco. Foi ali que ele foi espancando, roubado e violentado por Orelhudo e seus comparsas, e no dia seguinte, oferecido abrigo por Tom. Era agora que a história dos garotos começava.


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