terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Relíquias dos deuses 3 - Os Olhos de Petrus

Não há muito barulho num campo de batalha quando esta já se encerrou, os ganhadores comemoram e então partem levando os feridos para a devida assistência, mas uma vez ou outra uma cena peculiar acontece no meio dos animais carniceiros que vem para aproveitar a comida à disposição. Este era um daqueles momentos, um troll com um tipo de cajado retorcido com vários ossos presos com fios de corda batia em outro aparentemente mais jovem enquanto gritava.

-Acha logo meu pé!

-Ai, vô! Para com isso! – o outro falava empurrando o cajado e velho junto, os derrubando em meio aos cadáveres e o solo barrento cheio de sangue – Já falei pra esperar que eu vou achar a droga do seu pé!

-E não esqueça dos seus dedos! – o outro gritava com sua boca com apenas três dentes, balançando o cajado pra lá e pra cá, os ossos fazendo um barulho que lembrava um chocalho de criança.

-Não vem com essa velho, depois cresce mais!

-Zurk seu idiota! – e o velho batia novamente no troll mais novo com seu cajado de maneira frenética – Não aprendeu nada comigo? Nunca deixe pedaços seus por aí! Alguém pode pegar e usa-los contra você!

-Que nem você faz com os outros... – o neto resmungou.

-Exatamente! Agora ache logo meu pé!

Trabalhar para os outros nunca é agradável, trabalhar para seu avô é pior ainda. Enquanto Zurk procurava entre braços, cadáveres inteiros e pedaços de armas quebradas pensava numa maneira de seu avô sofrer um acidente e morrer no auge dos seus quinhentos malditos anos, mas sabia que gente ruim não morre fácil. Entre os xingamentos e protestos de seu avô acabou encontrando seus dedos que haviam sido arrancados num golpe de espada, quase os entregou para o avô segurar, mas então se recordou do que seu avô fazia e guardou consigo.

-Quanta incompetência, acha dois dedos, mas não acha um pé! – o velho reclamava – Você puxou mesmo o vagabundo do seu pai, não fazia nada direito.

-Não mesmo, a prova disso é você estar vivo... – Zurk resmungou levando uma paulada na cabeça pelo comentário.

-Olha ali! – o velho falou apontando com o cajado.

-Onde, criatura?

-Do lado daquela cabeça!

-Ta louco velho? Aquilo é pé de moça, olha o tamaninho!

-PÉ DE MOÇA? AQUELE É MEU PÉ SEU FILHO BASTARDO DE UMA CATINGUENTA! – o outro berrou arremessando o cajado no neto.

Discussões familiares e filosofias sobre que tamanho é grande e que tamanho é de moça para um troll depois, Zurk teve que voltar sua atenção ao campo de batalha e procurar seus dedos que se perderam na briga, enquanto o avô guardava o próprio pé na mochila.

Enquanto procurava suas partes perdidas tudo que o troll mais queria saber era se era pior com seu avô ou sem ele no mundo, quer dizer... Se ele morresse o pior que podia acontecer era nem Mandhros querer e mandar de volta, ou não? Amigos ele não tinha, parente ele era o único, pelo menos ninguém ia lhe perseguir por vingança e foi escorregando nela que Zurk conseguiu a resposta.

-Filho duma @!$#¨@# $¨!

Zurk já tinha visto muitas partes corporais desmembradas, também já tinha visto gente perdendo todo tipo de coisa estranha numa batalha, mas era a primeira vez que conseguia escorregar num olho! Devia ser de um Ogro ou Troll julgando pelo tamanho, Zurk pegou o maldito pensando em arremessá-lo no avô, mas ao invés disso ficou encarando ele na frente de seus olhos imaginando como alguém o tinha perdido, para sua surpresa o olho girou na sua mão e ele pode ver o avô e a resposta para a pergunta se era pior com ele ou sem foi respondida na hora, como uma iluminação de seus pensamentos. Sem se dar conta Zurk já estava de pé com o olho guardado consigo e o avô na sua frente.

-Que foi garoto? Achou o que queria?

-Sim.

-Ótimo, já cansei daqui... – o avô se levantou apoiado no cajado e começou a caminhar, até que ouviu o barulho de espada sendo desembainhada. – Que foi garoto?

-Não vá perder a cabeça vovô...

O mundo era melhor sem aquele velho lhe enchendo a paciência, batendo em sua cabeça, procurando malditas partes corporais toda hora que uma parte caía por aí e foi isso que Zurk viu e foi assim que acabou arrancando a cabeça do seu amado avô. Que Mandhros se preocupasse com ele agora, entre os trolls era costume devorar guerreiros valorosos, bruxos poderosos ou qualquer um que valesse à pena, e Zurk sabia que o certo seria devorar seu avô, mas o velho até mesmo para um troll era feio e estranho demais e muito provavelmente nada saboroso e Zurk não queria se dar ao trabalho. Depois de esquartejar devidamente as partes de seu avô com medo do velho voltar à vida, forçou-se a devorar o coração do jeito que encontrava-se, queimou os restos e só por garantia espalhou bem as cinzas aos ventos, se seu avô conseguisse voltar disso, Zurk esperava já estar muito longe. Foi caminhando pensando em parar na taverna mais próxima, beber muito, comer mais ainda e depois fazer tudo que queria da sua vida, seja lá o que isso fosse. Zurk nunca pensara muito nesse tipo de coisa, estava ocupado demais ouvindo os resmungos do avô. Mas por algum motivo que ele não podia imaginar, tinha uma multidão de pessoas enfileiradas andando entre ele e a taverna mais próxima.

-Me esperem, eu também quero ver o Sumo-Sacerdote! – um pivetinho que pelos cálculos do troll podia ser morto com um pisão gritava correndo entre a multidão.

-É verdade que ele guarda itens mágicos vindos do Deus? – outro comentava andando pra lá e pra cá.

-Eu ouvi falar numa história de batalhas entre os Deuses, parece que Petrus e suas armas da justiça vão nos livrar da guerra! – uma outra comentava causando gargalhadas no Troll. – Quem está rin...? – a mulher puxou sua companhia para longe do asqueroso troll que ria babando.

Mas nem que Belliard usasse o dedo mindinho, um Deus almofadinha, cegueta e ainda por cima
que se acha muito esperto ia acabar com a guerra, aquele povo devia ser muito idiota pra pensar isso! Mas Zurk não ia tirar a doce ilusão de paz da mulher, foi abrindo caminho entre a multidão até que o som de tambores o deixaram alerta, estava acostumado com tambores de batalha e quase arrancou a cabeça de uns três desembainhando a espada, muitos se afastaram enquanto um rapaz saia correndo aos berros:

-OS SACERDOTES ESTÃO A PROCURA DE UMA RELÍQUIA! RELÍQUIA DE PETRUS FOI ROUBADA!

-Mal chegaram e já estão perdendo as próprias coisas... – Zurk resmungou guardando a espada e olhando para a mão sem dois dedos, deu risada enquanto caminhava ouvindo os comentários.

-Eu soube que é um livro mágico da justiça e ordem! – falava um.

-Nada disso, é um escudo que protege os justos! – respondia outro.

-Dizem que o ladrão fugiu pelos campos, será que foi pego na batalha? – isso sim fazia sentido!

-Eu conheço um dos sacerdotes, eles estão muito preocupados. Dizem que quem tiver as duas relíquias será oniclemente...

-Onisciente, sua burra!

-E o que é isso, coisa esperta? – isso Zurk também não sabia, mas ainda achava aquela gente idiota.

-É... É... Não sei!

Já sem paciência pra tanta falação o Troll saiu empurrando a multidão para poder chegar à taverna, onde sem a menor intenção de pagar começou a beber e comer à vontade, deixando cair mais coisas no chão do que dentro da própria boca. Enquanto se alimentava não pôde deixar de notar que entrava na taverna um senhor de roupas modestas usando um galho com cheiro de mofo pra guiar o caminho, uma vez que uma venda lhe cobria os olhos, ou quem sabe falta deles. Zurk achava que aquilo era uma perda de espaço útil e como quem lê seus pensamentos o cego apontou o galho na sua direção.

-A justiça é cega, mas exata! – Mas eim? Se é cega vai acertar o cara errado, isso era um raciocínio simples. Cara mais estranho.

-Cala a boca e deixa os outros comerem... – Zurk mandou, atirando um osso na direção do outro, em nenhum universo a frase dele faria sentido, uma vez que é cego não pode ser exato... Ou pode? Não, não, não... Enquanto ia pegar qualquer coisa achou novamente o olho, por que ainda estava com aquela coisa?

Coisa mais macabra andar com partes dos outros por aí, isso era coisa do seu avô. Atirou o olho por sobre o próprio ombro e voltou a comer enquanto lá fora os passos, gritos e sussurros sobre especulações do item mágico perdido continuavam. Mais tarde naquele dia um gato iria brincar com o olho e ser expulso pelo taverneiro, o olho ia rolar e ir passando de um lugar para outro até parar em... Em qualquer lugar. Mas quem liga? Era só um olho e Zurk, e quase qualquer outra pessoa não perderia tempo pensando nisso. Mas por que tinha decidido matar seu avô mesmo? Teria sido realmente a melhor coisa a fazer? Zurk não sabia mas pelo menos não haveriam mais cajadadas.

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